5 da manhã, depois de uma noite de investigação produtiva, desligo o telemóvel para algumas horas de sono descansado. 5 horas depois, sou acordada com a noticia que não é, infelizmente, nova: “Faranaz, mais um atentado; Bruxelas, desta vez; aeroporto e metro; 30 e tal mortos; cento e tal feridos; já liguei à nossa filha; está bem”.
Não se pode mais dormir descansada. Nunca mais, desde o 11 de Setembro. Já nem é pelo medo. Na verdade, tenho consciência de que posso, a qualquer altura, enfrentar um ataque terrorista aqui na Europa. Interiorizei esta possibilidade quando em 1994 fui viver para o Reino Unido e o IRA perpetrava os mesmos crimes na cidade de Londres e arredores. Curioso como anos mais tarde, não muitos, o líder do Sinn Fein, um terrorista, se senta à mesa das negociações com o governo Britânico. O mesmo que diz que não negoceia com terroristas. Um mundo estranho este.
É mais um dia de desgosto e pesar por mortes provocadas por ataques de loucos que atuam em nome de Alá – o mesmo nome que aprendi ser o da divindade que resolve os meus problemas e os do mundo; o mesmo que protege os bons dos maus; aquele que previne o mundo das injustiças e da maldade.
Entre mortos, feridos e criminosos, os tweets, o facebook, a imprensa escrita, tv’s e rádios, convocam peritos; uns mais superficiais e ignorantes, outros mais informados e expeditos. As opiniões variam entre os que entendem que a raiz do mal assenta no Islão e nos muçulmanos, e outros que dizem ser tudo um “backlash” dos males perpetrados pelo Ocidente no Médio Oriente. A tónica dominante continua a ser a de que os terroristas pretendem destruir os valores morais do Ocidente. Fica-se uma semana a falar do assunto, para depois esquecermos tudo até um novo atentado. Aí, voltamos de novo à mesmíssima discussão.
Um pormenor novo: as discussões recentes giram em torno dos refugiados. Que não; não devem vir para porque “é preciso erradicar o islão da Europa” e “acabar com os muçulmanos” que “não sabem integrar-se”. São potencialmente terroristas, porque vêm da Síria e do Iraque; lá onde o DAESH se encontra. Há inclusive, um blogue intitulado “não me apetece” onde se enumeram as razões para não aceitar refugiados em Portugal. A cabeleireira do bairro partilhou-o e informou, assustada, que temos aqui ao lado de casa já 35 refugiados! Disse-lhe que não ficarão muito tempo, infelizmente. Portugal não é o lugar de eleição para eles; que seria bom para a economia que ficassem. Foi assim com os refugiados das ex-colónias. Foi nesse grupo que eu cheguei a Portugal.
A xenofobia do discurso de bairro fez pensar numa das consequências do Brexit. A acontecer, muitos portugueses vão ter de fugir por estarem ilegalmente a residir no Reino Unido. Imaginei também se “me apetecia” recebê-la com os dois filhos numa situação em que tivesse de fugir de Portugal porque os terroristas tinham ocupado ou colonizado a sua terra, destruído a sua casinha em Cascais, a moradia em Setúbal, e o cabeleireiro. Porque foi exatamente isto que aconteceu com os refugiados que hoje estão encurralados nas fronteiras à porta da Europa. Eles são os mesmos que sofreram guerras civis iniciadas pelo ingleses e franceses, com o tratado de Sykes-Picot, num projeto de pan-arabização do médio oriente, no qual, entre outras aberrações, deixaram os curdos num espaço estrategicamente propenso a guerras fronteiriças. Não bastavam interesses económicos e energéticos terem causado estes conflitos, a invasão do Iraque com fundamento numa Guerra, não Santa, mas Justa, veio a agravar o clima para o caos e desespero naquela região. O desconhecimento dos factos históricos impedem pessoas como esta a perceber que os refugiados são na realidade, vítimas dos erros dos europeus.
E é precisamente esta Europa que Michel Foucault indicou como sendo responsável pela condição biopolítica para a situação atual dos pedidos de asilo. Há 40 anos atrás, Foucault explicou que os estados liberais europeus com a sua preocupação com a saúde e riqueza própria, promovendo a comida saudável, banindo o tabaco, organizando prevenções de cancros de mama, e outras doenças fatais, só conseguiu cumprir esse projeto em detrimento da saúde e riqueza de outros povos. A biopolítica é então, para Foucault, uma política do “vive e deixa morrer”; ou seja, quanto mais um estado se focaliza na sua própria população, para a sua saúde e riqueza, maior é a possibilidade de criar condições para que outros morram; e o paradoxo mais aparente desta tese é o das centenas de milhares de pessoas que procuram asilo na Europa. Stephane Baele, da Universidade de Exeter, analisa o fenómeno dos refugiados a partir da tese biopolítica de Foucault, que diz que é impressionante como a mesma Europa que investe tanto na sua própria saúde consegue, simultaneamente, erguer cada vez mais barreiras impermeáveis para manter os refugiados nas suas fronteiras, contribuindo para a sua morte. Para Baele todas as razões apresentadas pelos países europeus para manter os refugiados nas situações em que hoje se encontram, e para justificar esta política, não tem fundamentos nem racionais nem morais nos valores europeus dos direitos humanos. A única tese que permanece é, para Baele, a de Foucault: uma sociedade tão obcecada com a saúde só é capaz de, direta ou indiretamente, matar pessoas que poderiam contribuir para essa saúde, porque assenta numa ideologia poderosa, a que Foucault chama racismo, no seu sentido mais lato.
Se a tese da biopolitica é ou não válida para compreender a riqueza de uns em função da miséria de outros, pode discutir-se. O que entendo que não podemos continuar a aceitar é uma discussão enviesada. Como lembrou o Principe Aga Khan, proprietário da The Nation Media Group, o maior jornal do Quénia, é persistir numa “era pós-facto”. Ou seja, embora cada um de nós tenha o direito a ter a sua opinião, é preciso perceber que por muito que nos custe, não podemos ser donos dos nossos factos apenas, ou seja, daqueles que vão ao encontro do lado em que me posiciono, ou do lado a partir do qual me revejo, nos lugares-comuns, e nos soundbites. O trabalho de um jornalista, como lembrava José Manuel Rosendo, não se deve fundamentar nas opiniões dominantes que circulam nas redes sociais, mas como lembra Aga Khan, na busca da veracidade dos factos, não obstante o posicionamento do jornalista ou do estudioso. Por outras palavras, a busca da verdade tem de superar a ligação ideológica a uma causa; seja essa nacionalista, política, religiosa, ou outra. Como dizia José Manuel Rosendo, no seu blogue, toda a precipitação para explicar as razões sobre o presente peca por não questionar sobre o passado; e “não se questiona o antes porque isso é uma chatice”. Ora, é precisamente a postura enviesada, incomodativa, porque dá trabalho, e toca em aspetos sensíveis das nossas crenças que devemos evitar sob pena da continua fragmentação do mundo.