![iman.jpg](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/10/8110168iman.jpg)
Iman Aliibn Abi Talib, primo e genro de Maomé, foi o primeiro imã para os xiitas no século VI d.c
Com a declaração do conflito aberto entre a Arábia Saudita e o Irão, a imprensa nacional e internacional teve necessidade de vir explicar o que separa os xiitas dos sunitas.
Todas as publicações, sem exceção, referem que as diferenças entre os dois grupos de muçulmanos resultam de uma divisão política sobre a quem caberia a missão de governação e liderança desta nova comunidade. E se, na verdade, a separação começa por aí, ela não compreende apenas uma divisão política.
O xiismo não passa só por aceitar Ali como sucessor do Profeta Maomé. O xiismo passa principalmente por aceitar Ali como a única e mais legítima autoridade a quem foi incumbida a tarefa de iniciar toda uma teosofia ligada a um conceito de Imamato diferente daquela que os sunitas defendem. Não assumir este como um evento crucial na história da divisão entre sunitas e xiitas impede pelo menos duas coisas importantes: 1) o entendimento dos vários xiismos hoje existentes, e a consequente relevância que terão na organização social, religiosa e política de vários estados muçulmanos; e 2) que se confunda o Imam com o Papa ou o Padre, e o Imamato com Igreja, como fez o Jornal de Negócios, ainda há dias quando se referiu ao Aga Khan, o Imam dos Ismaelitas que vai passar a ter a sua sede em Portugal.
Efetivamente, numa sociedade beduína de tipo tribal e pré-islâmica, a liderança era sempre a do homem mais velho, a quem se reconhecia a sabedoria e a capacidade de governação. Maomé tinha quatro companheiros mais próximos – os califa rashidun – ou líderes divinamente orientados, sendo AbuBakr o mais velho e Ali o mais novo.
Para uns muçulmanos, o Profeta já teria deixado em vida a Revelação e os seus exemplos de vida para que o Islão pudesse continuar e o mais lógico seria reconhecer a continuidade da liderança ao mais velho companheiro do profeta. A aceitação dos 3 primeiros califas como governantes políticos, foi pacífica para Ali e para os seus seguidores. O que os xiitas não aceitaram foi que algum deles substituísse Ali como o representante direto do Profeta na liderança religiosa. O grupo que decidiu seguir as Sunna, ou os conhecimentos e práticas passadas de geração para geração, que representam um conjunto de crenças e costumes avalisados pelas autoridades religiosas de dentro da comunidade, ficou conhecido como sunitas. Já os Shi’at Ali – Xiitas – a governação política poderia caber a AbuBakr, mas Ali era o líder religioso a quem cabia o Imamato.
O Imam é, no entendimento dos xiitas, o líder nomeado pelo seu antecessor, de linhagem genealógica direta, e pela via de Fatima, filha do Profeta, e é a luz manifesta de Deus (nur-u mubeen), aquele que tem a prerrogativa máxima na interpretação e adaptação do significado qurânico à vida dos crentes. Para Ali, como explicou aos seus seguidores, “o alcorão consiste num livro de compilações inscrito entre duas capas, e não fala uma língua; por isso, não pode dispensar um intérprete”.
São vários os documentos e registos onde Maomé indica que o seu sucessor é Ali. Provavelmente, a forma, o contexto e a própria semântica das palavras foram entendidas de forma diferenciada pelos muçulmanos. Numa destas circunstâncias, Maomé disse:
Eu sou a Cidade do Conhecimento e Ali é a sua porta; assim, quem quer que deseje o conhecimento, deixai-o entrar pela porta
Para os xiitas, o Imam Ali e todos os descendentes da linhagem de Fatima, apontados pelo antecessor, e em linha hereditária, assumiam a tarefa de passar da Tafsir (ciência do significado literal do Alcorão e do seu contexto) para a Ta’wil (análise da dimensão mais interna e significados mais profundos da revelação).
No xiismo o Imam convida os crentes a partir para a descoberta dos significados que poderão estar entre os “tesouros escondidos” no Alcorão. O Imam apela ao uso da Aql,. Este conceito é equivalente ao Intelecto em vez de razão, aliás tal como é entendido no cristianismo latino. É um significado muito parecido com o de nous da tradição grega. Ou seja o Intellectus/nous é aquele que é capaz de uma visão contemplativa das realidades transcendentes; enquanto que a razão trabalha com a lógica e cria conceitos mentais dessas realidades. Assim, se com o intelecto se é capaz de contemplar ou “ver” o Absoluto, com a razão só somos capazes de pensar sobre ele.
Foi este xiismo que representou um desafio intelectual e espiritual para os muçulmanos. Perante um texto “silencioso” só podemos “ouvi-lo falar” através de um intérprete: o intelecto. Esta relação entre o intelecto e a revelação exclui todo o tipo de literalismo ou de leituras superficiais, e previne qualquer significado óbvio ou unilateral. O desafio para os xiitas que seguiam Ali era o de procurar os significados múltiplos que poderiam estar subjacentes ao texto, e aceitar que o Imam, dotado da Alma Universal, a mesma que esteve em Maomé e em todos os profetas que o antecederam, é aquele que consegue fazer a leitura mais correta e adequada do contexto e do significado da revelação.
O xiismo, tal como o próprio Islão, não é nem homogéneo nem estático. A história dos muçulmanos, sunitas e xiitas, é feita de continuidades e rupturas. Por isso encontramos vários tipos de sunismo e vários tipos de xiismos.
Os xiismos mais conhecidos são o Duodécimano, que aguarda a chegada do Messias, e maioritariamente Iraniano, e o xiismo Ismaelita, apolítico, sem estado, e liderado pelo Principe Aga Khan IV.
A razão porque é importante perceber o xiismo na espiritualidade iniciada por Ali e depois seguida por vários outros Imames, e também por inúmeros pensadores sunitas e sufis, é porque ajuda a perceber muito do desenvolvimento do pensamento filosófico e científico dos muçulmanos num ambiente de notável humanismo, que marcou a história da importância da civilização islâmica.
O período de Humanismo e do Renascimento na Idade Buyida, tal como descreve de forma fascinante Joel Kraemer, é aquele onde acontece o verdadeiro diálogo inter-religioso: o que inclui crentes e descrentes, e que precede o Renascimento na Europa. É um tempo onde todas as dinastias que governavam o mundo, incluindo a Fatimida, governada por Ismaelitas, eram xiitas. E era no espírito do xiismo inaugurado por Ali que todas elas repudiavam os dogmas ou outros tipos de fundamentalismos, e patrocinavam o saber humanista. É um tempo em que a historiografia ocidental europeia designa como “idade média”; aquele que fica entre a “Antiguidade” e a “Modernidade”, e onde parece que nada aconteceu.
Não é esta a opinião de Joel Kraemer, Heinz Halm, Henry Corbin, Paul Walker, Joseph Van Ess, e outros que têm estudado o impacto deste tipo de espiritualidade universal, preconizada por Ali, desenvolvida pelos muçulmanos xiitas ismaelitas e sunitas sufis, e que estimulou a intelectualidade, a ciência, e influenciou definitivamente a história do pensamento moderno na Europa e no Ocidente em geral. Para estes estudiosos do islão e do xiismo, foi essa busca de conhecimento que serviu depois para a construção de uma Europa Renascentista e Iluminista, a mesma que partiu com o astrolábio, a astronomia, a álgebra, e o telescópio, para a descoberta do mundo.