Quando se menciona “Eletrochoque”, muitos relembram de imediato o filme “Voando sobre um ninho de cucos” de Milos Forman, de 1975, e sobretudo o personagem superiormente interpretado por Jack Nicholson, sucessivamente castigado pela sua irreverência e inconformidade pela sádica enfermeira Mildred Ratched (Louise Fletcher).
Mesmo para quem não leu o romance original de Ken Kesey, escrito em 1962, ou viu o filme de Forman, a ideia de eletrochoque remete para uma forma bárbara e antiga de intervenção psiquiátrica com uma simbologia mais associada a castigo e submissão do que a uma forma de tratamento.
A narrativa antipsiquiátrica dos anos 60 contida no romance de Ken Kesey e no filme de Milos Forman casava perfeitamente com o ideário filosófico de Szasz e Foucault que consideravam a psiquiatria como uma pseudociência ao serviço do controlo social do pensamento, do comportamento e da liberdade de pessoas que expressassem a sua diferença e rebeldia face aos poderes dominantes. O electrochoque seria assim o meio exemplar dessa finalidade repressiva e primitiva.
Por estar razões, a Psiquiatria, durante mais de duas décadas, abandonou ou, pelo menos, foi envergonhadamente escondendo esta intervenção por Electroconvulsivoterapia. Assim, muitos milhares de doentes viram-se privados de um tratamento muito seguro e eficaz, com indicação para formas muito severas de doença mental que na maioria dos casos não têm outras alternativas terapêuticas.
Hoje, a Electroconvulsivoterapia, praticada em meio hospitalar, sob anestesia, e num contexto de “Sala Cirúrgica”, nada tem de bárbaro, permite uma melhoria acentuada e rápida dos doentes deprimidos mais graves, de doentes com esquizofrenia ou depressão catatónica e é, seguramente, o melhor tratamento para todos aqueles com intenção suicidária incoercível.
Comparando com outras intervenções médicas, de grande valor diagnóstico e/ou terapêutico, a Electroconvulsivoterapia é um ato menos cruento e de menor risco que uma Broncoscopia ou uma Colonoscopia. No entanto, como se explicitou atrás, a “carga estigmatizada” sempre associada à doença mental e à psiquiatria quase extinguiu este tratamento das opções para os doentes com as mais severas formas de sofrimento mental durante demasiado tempo.
Quando hoje indico alguém para Electroconvulsivoterapia, proponho ao próprio e à família que consultem a informação disponível na Internet, para além, obviamente, das explicações que dou e do direito à consulta de uma segunda opinião, fundamentado-se assim o consentimento informado para a intervenção.
Parece-me, assim, importante contribuir para reabilitar publicamente este “velho” tratamento introduzido pelos italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini nos anos 30. Se ninguém contesta o valor salvador da corrente elétrica de alta intensidade no tórax para reverter uma paragem cardíaca que pode trazer uma pessoa da morte eminente à vida, porquê contestar o valor salvador de corrente eléctrica de baixa intensidade, sob anestesia, no crânio, que possa salvar a vida de um doente com intenção suicida.
Garantidamente a Electroconvulsivoterapia não muda personalidades nem “amolece” pessoas. Na pior das hipóteses pode deixar a pessoa com as suas capacidades de memória diminuídas temporariamente. Mas este efeito adverso é, afinal, um preço baixo a pagar face ao benefício que estes tratamentos trazem.
Na verdade, o “reset” restaurador do ambiente electrofisiológico cerebral que a electroconvulsivoterapia produz e que constitui o seu mecanismo de ação terapêutico não deverá ser questionado só porque ainda hoje alguns países indevidamente autorizam o uso pelas suas polícias, de eléctrodos semelhantes aos dos aparelhos de eletrochoques, nos músculos periféricos, para provocar dores nos prisioneiros que torturaram.
Aprendemos com Guantanamo que a água que necessitamos para viver é também a forma mais eficaz de tortura. Certamente não deixaremos de beber água.