Eram 9h40 de 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, quando a terra tremeu e o Sol se toldou. Depois, o mar recuou para logo a seguir se lançar sobre a cidade. Entre os gritos e o estrondo da derrocada dos edifícios, irrompeu o fogo, um gigantesco incêndio, que foi destruindo o que a terra e mar não tinham engolido. Mais tarde, já pelas 11 horas, um novo abalo levou as pessoas, em pânico e desespero, a procurar, num desvairamento, as fugas possíveis.
Portugal era um importante protagonista na Europa do tempo; os ecos e as circunstanciadas notícias do desastre deram não só testemunho da magnitude da tragédia e do horror vividos como realçaram a importância e o prestígio da cidade de Lisboa no contexto europeu: metrópole de um império colonial, centro difusor do catolicismo e grande entreposto comercial. O que por aqui se passava, fosse de raiz natural, divina ou humana, tinha inevitavelmente repercussões em todo o Continente. O apoio das cortes europeias e o socorro internacional mostraram a existência de uma unidade inesperada, em torno de um acontecimento trágico e irrepetível.
Mais, esta história recontada em muitos palcos e épocas diversas, com sucessivas réplicas nacionais e internacionais, transformou o drama de Lisboa num arquétipo de catástrofe atemporal não permitindo, com a ajuda da Natureza que a ritmos inconstantes e imprevisíveis vai reeditando a tragédia, que os homens dela percam a memória.
O terramoto que destruiu Lisboa foi, à luz actual da ciência, um dos mais violentos e destrutivos da história; como escreveu Voltaire, no auge da controvérsia filosófica que avassalava a Europa naquela segunda metade do século XVIII, um cruel exemplo de filosofia natural.
Passados 260 anos da efeméride, importa recordar os seus legados, as suas réplicas, à luz do pensamento contemporâneo.
Antes de mais, porque o Terramoto de Lisboa de 1755 marcou, no contexto do espírito das luzes, o surgimento da primeira catástrofe com sinal de modernidade.
A notícia da sua ocorrência atravessou toda a Europa com uma profundidade e rapidez inusitadas e desencadeou um enorme debate sobre a natureza dos cataclismos naturais retirando-lhe contornos morais e, sobretudo, o carácter essencialmente divino, remetendo-os para a esfera laica: no quadro de um novo pensamento filosófico, então em gestação, a ira de Deus seria substituída por um esforço de compreensão racional e científica do fenómeno.
Viragem difícil porque as velhas crenças de tão enraizadas pareciam óbvias: os homens, confrontados com as suas fragilidades e impotências, procuravam uma explicação consistente, divididos entre angustiantes hesitações na compreensão de um fenómeno com tal magnitude e capacidade destrutiva – entre a aceitação e a recusa do castigo e do conforto divinos e a força de uma razão lógica que a pouco e pouco se ia impondo.
Religião e razão ficaram, em muitos casos frente a frente, como ficou bem ilustrado na memória que Kant, em 1756, consagrava ao Terramoto, evidenciando as suas causas naturais, ou na quase centena de intervenções que no mesmo ano foram feitas, sobre o tema, na Academia Real de Ciências de Paris. Interpretações tributárias do estado da ciência e da visão do Mundo existentes à época, geradoras e portadoras das novas visões do Mundo que em breve explodiriam.
O Terramoto tornar-se-ia catalizador da renovação do pensamento europeu marcando o fim das correntes filosóficas optimistas, dominadas pelas ideias de Leibnitz, postas em causa e por fim ridicularizadas pelo episódio de Cândido, ferido e coberto de destroços, em Lisboa, no dia do terramoto. Voltaire tinha encontrado o argumento decisivo para pôr, também ele, uma pedra sobre o optimismo filosófico e desta forma abrir caminho para o moderno conhecimento científico.
Noutro plano, será ainda de destacar como o Terramoto de Lisboa deu início a uma nova forma de gestão das catástrofes, permitindo que o despotismo iluminado exercesse o seu poder, em absoluto esplendor, quer no que respeita aos procedimentos de auxílio prestado às populações, nomeadamente através da imediata intervenção das autoridades reprimindo impiedosamente os saques, pelo apoio prestado às populações desamparadas, pelo tratamento dado aos milhares de mortos, pela tomada de medidas de saneamento mais urgentes, quer, sobretudo, no que se refere à concepção e reconstrução da nova cidade de Lisboa, fazendo emergir rapidamente uma visão criadora a partir do caos instalado e da extensão apocalíptica da calamidade.
À distância de mais de dois séculos e meio, esta foi uma das dimensões mais interessantes do fenómeno: a reacção do Estado, a forma como chamou a si a responsabilidade de resolver os problemas, como se organizou para dar uma resposta concertada, pronta e alargada às consequências do terramoto. Também por isso este foi, por certo, um dos fenómenos que aceleraram os avanços do mundo moderno que estava a começar: o terramoto de 1755 foi a causa e a razão para a revolução urbanística e arquitectónica de que foi protagonista a cidade de Lisboa.
É que, de certa forma, sem terramoto não teria havido ‘pombalismo’; ou seja, foi a partir da destruição física da cidade e da destruição do quotidiano político e administrativo que se assistiu à emergência de um novo cenário político – onde se impôs Sebastião José de Carvalho e Melo – dando origem a uma nova fórmula política, concertada e autoritária, protagonizada pelo futuro Marquês de Pombal; acendeu-se então um debate político que havia de se prolongar pelos anos seguintes.
Instalou-se um inequívoco momento de ruptura, anunciando uma alteração da natureza do poder, da sua actuação, do seu processo de decisão e a emergência efectiva de um novo mando político, dotado de renovados fundamentos ideológicos; são claros os reflexos que se fizeram sentir na actuação do Estado, na circunstância em estado de emergência, desenvolvendo métodos de planeamento e controlo da tragédia e das suas consequências mais imediatas mas com uma perspectiva de futuro e de reconstrução baseada numa visão secularizada de gestão dos negócios públicos. Daí a rapidez com que foi montado um gabinete de crise, por iniciativa do monarca, D. José, mas em cuja direcção Pombal se distinguiu.
Tudo aconteceu com ‘surpreendente’ rapidez, organizando o quotidiano, dessacralizando o acontecimento, avançando rapidamente para a reconstrução. A catástrofe acabou por constituir contexto de aprendizagem e a destruição pretexto de renovação da antiga dinâmica espaço-funcional da cidade que seria inteiramente substituída por um novo paradigma urbano racional, gerador de uma nova linguagem urbanística. Reacção rápida, provando o novo espírito da modernidade, denotando uma grande capacidade interpretativa dos acontecimentos, uma cabal compreensão das necessidades geradas, um propósito firme e transversal de as satisfazer e uma utilização prática do conhecimento científico, confiando na vontade e no saber com natural prejuízo das visões providencialistas até então prevalecentes.
Instalou-se então um novo plano urbanístico e arquitectónico, coercivo, determinado com precisão; marca da personalidade da cidade moderna, iluminista, afirmativa, reflectida na cidade pombalina ainda hoje temos, cidade histórica, cidade nossa, cidade herdada que se confronta com o seu próprio e inexorável crescimento, sobre a qual recai o inalienável dever de salvaguarda e preservação.
A recorrência com que ocorrem, em terras mais ou menos distantes, reafirmam a fragilidade e a impotência humanas, e a indispensabilidade das estratégias de prevenção e gestão do risco das catástrofes naturais. Entre nós, a Lisboa renascida do Terramoto é hoje um legado universalmente reconhecido, ainda desafiante e sedutor pela persistente (re)descoberta e fruição que proporciona.