A abertura que me ocorre para estas mal notadas linhas sobre o 2º volume de A Vida no Campo: Os Anos da Maturidade, de Joel Neto (Ed. Marcador, 232 pp., 17,50 euros) (JN), seria “puro deleite”. Associação com “vacas felizes”? Ou será antes com a foto da capa, cheia daquele tenrinho verde açoriano (único) de pastagens, no caso, palpito eu, visto da serra da Ribeirinha? Talvez. Saiu-me assim esse resumo em duas palavras de uma leitura feita de um só fôlego das 200 e poucas páginas deste delicioso livro.
Avançarei com declarações de interesse. Gosto de diários. Torga, sim. Devorado de fio a pavio. Dezasseis volumes. Vergílio ainda mais. E – continuando em declaração de interesses –, se calhar porque tem a ver com os Açores e mergulha na paisagem como só Raúl Brandão conseguiu fazer, Fernando Aires também figura no topo da minha lista.
E esta é a terceira declaração: sou um apanhado pela natureza. Não vou dizer que doentiamente, porque tenho algum brio e com dificuldades admito fraquezas. No entanto, avanço que, pela leitura de Joel Neto (JN), fiquei convencido de que a paisagem natural no seu todo, isto é, na sua fisicalidade panorâmica, não terá pesado significativamente na decisão de regresso à ilha por parte do autor. A prova que suponho cabal é o facto de ele ter subido a montanha do Pico e o seu único comentário ter sido sobre o silêncio; nada sobre os grandiosos panoramas.
A natureza de Joel é a das plantas, das flores, dos animais, um por um designado pelo seu nome, algo pouco comum na tradição portuguesa onde árvores são árvores, matas ou florestas, e aves são pássaros, passarinhos e passarocos (em flora, Fernando Aires é uma exceção). JN chega a querer saber nomes de árvores na Avenida da Liberdade, em Lisboa, e não ter a quem perguntar.
Verdade se diga, uma descida à Fajã dos Cubres a partir da Serra do Topo impressiona o diarista e fá-lo declarar ser o passeio mais bonito dos Açores. Contudo, não é de facto a paisagem que o comove no quotidiano, mas os componentes dela, individualmente tomados. É sobre eles que incide a sua penetrante e afetuosa atenção.
Abro um parênteses para registar o meu agrado por também ele se ter rendido à paisagem de S. Jorge. Embora não tenha visto sinais de ele ter deambulado pelo deslumbrante Pico da Esperança e imediações, o meu mais fascinante locus jorgense.
Já agora, aproveito o intervalo para, ainda a propósito de S. Jorge, terra natural de um avô de Joel, referir ter sido este quem o advertiu da importância de ler “as letrinhas” nos contratos, “porque isto às vezes há gajos…”. (Andreas Mitrellis, um greco-americano meu amigo, também me avisou quando cheguei aos EUA: Cuidado com as letras pequenas das apólicesde seguro. De repente acontece uma pessoa perder um braço num acidente e, quando vai ter com um funcionário dos seguros, chamam-lhe a atenção para o que está escrito numas linhas miudinhas: “No caso de o cliente perder um braço num acidente, a companhia de seguros fará todo o possível para ajudar a encontrá-lo”).
Quando se tornou comum entre os jovens escritores portugueses viajar para outros países em cata de temáticas supostamente universais para a sua escrita, JN sai de Lisboa para se recolher à sua ilha Terceira. E foi mesmo para o interior, a Terra Chã, de onde nem sequer se divisa o mar.
Curiosamente, não é também o mar ou a vista dele que o atrai. Sobre o mar, aliás, escreve uma magnífica entrada onde explica o seu silêncio acerca dessa constante do cenário açoriano.
Numa outra das entradas mais memoráveis deste diário, JN responde à pergunta que certamente lhe é feita com frequência: como lida com o mexerico de um meio pequeno. A resposta é antológica: “Se a escolha for mesmo entre a exposição ao mexerico e a solidão do anonimato, então continuo a preferir arriscar que bisbilhotem sobre mim, mas não deixem de saber quem sou e de ir ao meu velório”.
Doravante, passarei a citar essa passagem sempre que referir uma frase de um antigo professor, Francisco Carmo, que, a dada altura da sua já avançada, carreira voltou a Roma para completar o seu doutoramento. De passagem para um congresso, visitei-o lá. A dada altura, conversávamos sentados na Piazza Novona, recanto mágico de comover qualquer mortal sensível. Exaltava-lhe eu o encanto da harmoniosa praça e perguntei: “Vai deixar uma beleza destas e regressar a uma pequena ilha no meio do mar?” A resposta do professor saiu-lhe reflexiva, algo melancólica, todavia lapidar: “Estou cansado de ser anónimo”.
O narrador deste diário (conheço apenas superficialmente o autor) revela e expõe uma sensibilidade rica, uma atenção aos pormenores do mundo que o rodeia, expressando-se numa linguagem de tal modo cativante que os pequenos nadas do seu dia a dia emergem reais e próximos também do leitor. A humanidade que transparece na sua quotidiana interação com as plantas, os animais, as pessoas que encontra na rua, os vizinhos, deixam de ser locais para se transfigurarem em universais. Quer dizer: ao mergulhar no interior da sua ilha, o autor transforma o mundinho em que se envolveu num espaço global.
São tantos os exemplos de que me poderia servir para demonstrar as afirmações acima, que acabaria citando o livro quase todo. Qualquer página ao acaso poderia exibir as sugestivas observações, registos e comentários de um senhor do verbo que é também dono de um olhar atento e perspicaz e de uma cativante humanidade. A entrada em que JN, movido pelo remorso de em tempos ter sido menos ético no tratamento dado a uma pessoa sobre quem um jornal lhe impôs uma reportagem, ao que ele contravontade anuíra, é um alto momento revelador de um caráter cujo retrato interior aos poucos vai emergindo ao longo destas primorosas páginas.
Releio estas minhas linhas de comentário ao livro e apercebo-me do facto de não ter escrito uma recensão, mas uma página de diário. E é. Uma “nota bárbara”, como chamo às minhas que venho acumulando há mais de uma década. Retirar-lhes-ia esse qualificativo se elas me saíssem tão genuínas, e simultaneamente tão elegantes, como as deste diário de Joel Neto.
A idílica prosa de Joel Neto
Onésimo Teotónio de Almeida escreve sobre A Vida no Campo: Os Anos da Maturidade, de Joel Neto