Há uns meses, no velório de uma amiga que nos deixou demasiado cedo, as conversas sobre as saudades que íamos ter dela derivaram para outras mais filosóficas, sobre o sentido da vida. Ou, pelo menos, da vida que levamos.
Estava nessa altura a terminar de ler o livro de Arianna Huffington, fundadora do jornal The Huffington Post (A Terceira Medida do Sucesso, Ed. Presença), e falei de um capítulo que me tinha impressionado particularmente. Quando Arianna se viu nas urgências de um hospital, entre a vida e a morte, depois de meses quase sem dormir e a trabalhar a um ritmo alucinante (o que levou a que caísse e batesse com a cabeça na esquina de uma mesa…), viu a sua vida passar-lhe perante os olhos, em segundos, e ficou a imaginar o que os amigos diriam dela no seu funeral. Também eu fiquei a pensar nisso. O que gostaria que dissessem de mim? Seguramente não seria que “era muito dedicada ao trabalho e que se arrastava exausta para conseguir ter sempre tudo feito a tempo”.
Gostaria que me recordassem como uma boa mãe, uma boa amiga, alguém com que se podia contar em todas as ocasiões. Como uma pessoa bondosa, luminosa, feliz. Alguém que gostava de viajar, de grandes aventuras, de fotografar e jardinar, de fazer surpresas, de contribuir todos os dias alguma coisa, por pequena que fosse, para tornar o mundo menos cinzento.
Olho-me ao espelho e as minhas olheiras comprovam porque motivo o reflexo do que sou não corresponde totalmente ao que gostaria de ser. Falta-me tempo para descansar (dormir!), para estar com os amigos, para dar mais de mim aos outros – e até a mim própria. Pago as mensalidades de um ginásio onde raramente vou, as plantas da minha varanda definham com falta de atenção, as notas dos três livros que tenho por escrever começam a ganhar um assustador tom amarelecido. Não sou caso único, obviamente. A falta de tempo, nestes dias que passam por nós a uma velocidade supersónica, é a queixa mais comum, da Ásia às Américas, e ouvida e repetida por todos nós. Tentamos encaixar tudo o que temos para fazer (teremos mesmo?) nas poucas horas que um dia tem. Mas, por mais organizados que procuremos ser, a vida não se consegue encaixotar numa tabela de Excell. Até porque as linhas estão sempre em movimento. Adiamos o que parece ser adiável (brinco com o miúdo no parque amanhã, mudamos o jantar de amigas para a próxima semana, que se lixe o cabeleireiro) e roubamos horas ao sono. Os especialistas conhecem bem o fenómeno: mais de metade dos portugueses dorme muito menos do que deveria, com consequências graves na saúde, no desempenho profissional e até nas estatísticas de acidentes na estrada. Andamos todos exaustos.
Sempre que telefono a uma amiga, o início da conversa não foge muito do mesmo guião:
– Está tudo bem?
– Sim, tudo bem, estou só cansada…
E este “só” é tudo.
Todos conhecemos de cor a conversa das “prioridades”. Mas conseguir ordená-las de forma a que aquilo que é realmente importante na vida suba para o topo da lista não é mesmo nada fácil. Já perdi a conta às vezes em que adiei almoços ou jantares, as festas de aniversário que perdi, os livros que comprei e nunca li. Por vezes consigo recuperar um pouco o pé quando tomo decisões unilaterais, nas discussões que se passam entre mim e mim, na minha cabeça. Por exemplo, nas férias de verão decidi que durante duas semanas iria estar ‘desligada’. Nada de estar ao telemóvel, a espreitar os e-mails ou o facebook. Só eu, o meu marido e o meu filho, numa grande aventura em África. Ativei o “fora do escritório” no email, deixando o contacto de quem me substituía na minha ausência, e quando voltei tinha mais de cinco mil emails por responder… Passei dias a ler e a apagar mensagens e, no final, a verdade é que não havia ali nada de urgente ou que não pudesse ter sido resolvido sem a minha intervenção. Ninguém é insubstituível no trabalho – mas na vida já não é bem assim.
O grande desafio é ir conseguindo tomar mais decisões unilaterais, a bem da minha felicidade (e sanidade), no dia a dia. Por exemplo: eu gostava de conseguir acordar mais cedo, começar o dia a beber um chá verde, fazer meia-hora de ioga ou dar uma corrida à beira mar. A seguir tomar um banho com calma, comer um pequeno-almoço saudável, ler as notícias do dia. Só depois o meu filho acordaria, e ainda teríamos tempo para brincadeiras antes de o deixar na escola. Mas a verdade é que acabo sempre a levantar-me já cansada (é raro conseguir dormir mais de 6 horas), a vestir-me (e a vestir o miúdo) em poucos minutos, e a sair a correr de casa com mil coisas nos braços (e na cabeça). E a melhor versão de pequeno-almoço que consigo encaixar nestas manhãs frenéticas é beber um iogurte enquanto conduzo. Já tentei mudar esta rotina mil vezes, e mil vezes falhei. Mas não desisto. Na próxima semana, já prometi a mim mesma, vou instituir a ‘regra Cinderela’ e adormecer sempre antes da meia-noite.
O escritor Pedro Paixão escreveu que “viver todos os dias cansa”. Assim cansa mesmo muito. E “aquela que andava sempre cansada” não é, definitivamente, o “elogio” fúnebre que eu gostaria de ter.