Propõe-me a VISÃO terminar a minha inserção na coluna «Os trabalhos e os dias», na qual tenho feito – há mais de um ano – uma parceria bastante estimulante com o Paulo Chitas, para iniciar uma coluna própria, com um novo título que devo criar.
Depois de alguma reflexão, o título que proponho é «Pelo princípio». E gostava de explicar o que me levou a escolhê-lo.
Começar pelo princípio significa procurar uma compreensão da estrutura por entre o nevoeiro da conjuntura. Quantas vezes não nos apercebemos de que, a dada altura, estamos a discutir superficialidades já bem distantes da profundidade que deu origem a uma qualquer discussão? E aconselhamos «voltar atrás»?
Mesmo a ciência preconiza essa necessidade de distância em relação ao objecto de estudo, razão que esteve por detrás das principais críticas feitas ao método da «observação por participação» tão usado na Antropologia. Começar pelo princípio implica, então, ter em conta as várias dimensões que podem implicar nas questões que levantamos; considerar, eventualmente, as várias abordagens que outros desenvolveram sobre o assunto; mas, mais importante ainda, definir os conceitos, trabalho filosófico cuja raridade explica a larga maioria dos desentendimentos que povoam o nosso quotidiano, privado e público.
Começar pelo princípio representa, em suma, um esforço de fuga à facilidade, de preocupação com a necessária honestidade intelectual, de consideração e reflexão perante os argumentos do adversário.
Mas acima de tudo, começar pelo princípio significa perguntar porquê. Duvidar. Questionar os ensinamentos consuetudinários da tradição ou da convenção e procurar o nosso próprio caminho, um caminho individual e original, seguindo a lição de Malraux, segundo o qual «a cultura não se herda, conquista-se». Ou seguindo o conselho do meu «velho professor», Vergílio Ferreira, que não se
cansava de nos repetir: «os meninos devem ter a mania dos porquês; devem perguntar sempre o porquê de tudo». É na procura incessante dessa «cultura individual», como a defini um dia, que fundamento a minha humanidade e a minha razão de existir.
Mas «pelo princípio» significa também «ir pelo princípio», «lutar pelo princípio», ou seja, procurar os meios que melhor servem os princípios com que fundamentamos a nossa existência, o nosso modo ser, a nossa «cultura individual», e não a miséria dos fins com que o utilitarismo nos seduz.
É difícil, é preciso coragem para negar o facilitismo do paraíso. Trincar a maçã da sabedoria foi, desde a génese da humanidade, sinónimo de escolher a dor e o sacrifício, o frio e a solidão. E quanto maior é a ousadia de criarmos um mundo original, maior é o isolamento que devemos suportar. Mas, como dizia o Nietzsche, esse sofrimento e abandono é a moeda que devemos pagar para usufruir da desmesura de sermos nós próprios.
Ser «pelo princípio» corresponde à garantia de sermos inteiros no dia derradeiro. Despojado de qualquer fé no sobrenatural – a não ser no impossível da arte –, sonho chegar ao dia final e, já que não posso pedir a outrem um perdão cobarde, não ter de me envergonhar de mim, do que fui, do que fiz.
Como escreveu o Torga, companheiro de caça do meu pai e imagem fugidia de infância:
«Não há céu que me queira depois disto,
Nem deus capaz de ouvir-me.
Um homem firme
É firme até no céu,
E até diante do criador!
É o que eu diria se, ressuscitado,
Fosse chamado
A depor!»
«Pelo princípio» é que vamos. E «pelo princípio» irei.