Aqui, no velho café Portugália, na bela cidade património de Angra, enquanto me delicio a saborear o pequeno-almoço de pão de trigo açoriano regado pelo caloroso galão de leite de tetas de vacas felizes, deixo-me ninar na nostalgia que me traz o recordar trinta e quatro anos de jornalismo na rádio, prestados então na Radiodifusão Portuguesa, e rabisco este texto no guardanapo de papel. E, no silêncio de mim e ruído dos outros, lembro-me da velha onda média de cinco quilowatts de saída, das manhãs de música portuguesa, rodando discos em vinil, após limparmos cuidadosamente as agulhas com álcool etílico, das reportagens em diferido, em que depois corríamos para a Estação para que o som ainda apanhasse o noticiário, do colega a desferir uma forte pancada no gongo à hora certa, de ir trabalhar como um bancário de fato e gravata, do emocionante hino nacional a sair para o éter, após anunciarmos: “Emissor Regional dos Açores da Emissora Nacional.”
Recordo as radionovelas, então gravadas no velho estúdio da Gaspar Frutuoso, em que nos divertíamos à brava, rindo como loucos de nós próprios, enquanto interpretávamos personagens de dramas e púnhamos ouvintes a rir ou a chorar. Mal sabiam os ouvintes que, quando choravam em momentos trágicos, no estúdio também choráramos, mas de tanto rir.
A rádio ontem era a televisão de hoje. Quando chegávamos a uma ilha mais distante do centro emissor, surpreendíamo-nos com receções apoteóticas, como se fôssemos atores de Hollywood. Até autógrafos dávamos!
Curiosamente, naquele tempo, para alguns daqueles ouvintes mais velhos, rádio significava uma caixa ruidosa que jamais conseguiriam tolerar … e de que até desconfiavam, porque a associavam a artes mágicas e sabe-se lá mais a quê! “Tudo putedo”, comentavam algumas idosas mais conservadoras e sem papas na língua, face às tramas amorosas das novelas a que dávamos voz. Como é possível esquecer a rádio-novela “Simplesmente Maria”, de que alguns açorianos ainda se lembrarão, e que, comparada com as telenovelas da atualidade, poderia bem ser hoje para consumo de meninos de coro!
Conta-se que um conhecido avô de freguesia, que fora à cidade aparar a farta bigodaça, no barbeiro, ouviu pela primeira vez as notícias em direto desde Lisboa através da onda curta da Emissora Nacional, saídas de um dos primeiros aparelhos chegados à ilha. Regressando a casa, contou a novidade à família. Tinha ouvido, sem que pudesse ser mentira, pois andara à roda da caixa, que aliás era pequena, não podendo lá caber dentro ninguém, mesmo que fosse mágico ou anão… Tinha ouvido, pois, em grande espanto, a voz de um homem a falar em Lisboa, ali mesmo, sentado numa cadeira, no barbeiro da cidade. A mulher não se impressionou minimamente com semelhante relato e prontamente, sem que se pudesse conter perante tal disparate, chamou-o de tolo. Poderia lá nada ouvir um homem a falar em Lisboa, com o mar pelo meio, sentado como estava num barbeiro em Angra. Só visto! “O mais certo era estar alguém escondido a pregar-te uma partida! Ora essa! Sais-te com cada uma!”
Em tempos que deixam saudades, era assim a velha rádio açoriana.