Conheci-o em 1991 quando fui estagiar para o já extinto semanário O Jornal. Para um jovem de 23 anos, acabado de sair de um traumático curso de Filosofia e de uma excitante formação em jornalismo do Cenjor, o Daniel Ricardo fazia parte do Olimpo da redação. Emparceirava com os nomes maiores do jornalismo que se fazia naquelas salas da Avenida da Liberdade: Afonso Praça, Assis Pacheco, José Carlos de Vasconcelos, Lina Pacheco Pereira, Cáceres Monteiro.
O Daniel tinha um cargo de que não me recordo – talvez chefe de redação – mas o que era mesmo importante é que era ele que me lia os textos. O primeiro que escrevi, sobre uma rádio pirata da linha do Estoril em que acontecera qualquer coisa a que se dava importância nos anos 90, foi completamente retalhado. Quer dizer, foi assassinado, espezinhado, esmagado, trucidado, pensei eu. Para mim, com muito sangue na guelra, arrogante e inexperiente, foi quase como um ataque pessoal. Quando olhei para a versão saída do computador do Daniel não reconhecia um milímetro da prosa que eu dera à luz. Ele explicou-me a razão pela qual o texto original não prestava mas isso não me interessou nada. Odiei-o.
Não foi a primeira nem a última vez que isto aconteceu. Da sua secretária com janela para a Rodrigues Sampaio, na qual guardava uma garrafa de uísque da qual beberricava da parte da tarde, os meus textos continuaram a sair, durante meses, “reorganizados”. Apascentei com amargura a raiva que isso me causava e julguei durante muito tempo que isso me iria custar o lugar de estagiário e que nunca viria a ser jornalista.
Quando terminou o período de três meses em que estive à experiência, estava expectante em relação ao meu futuro. Quando me deram a notícia de que me iam contratar, fiquei um pouco perplexo. Soube mais tarde que a opinião do Daniel, aquele que considerava o homem do talho da escrita jornalística, foi decisiva para que me convidassem a ficar.
A carreira do Daniel construiu-se assim: a ver textos dos outros, a melhorá-los e a recuperá-los, a dar-lhes o golpe de asa que os tornava merecedores de serem publicados. Fê-lo a estagiários e a nomes grandes do jornalismo português, a todos sem que o seu nome fosse creditado se não na ficha técnica do local onde trabalhava.
Sempre partilhei a mesma redação do Daniel desde que me tornei jornalista. Quando acabou o semanário O Jornal, passámos ambos para a revista VISÃO. Fui colega dele no ensino do jornalismo, no Cenjor e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Convidou-me a dar aulas de jornalismo no Instituto Piaget e no Instituto Politécnico de Leiria. Sempre esteve disponível para continuar a tirar dúvidas, para discutir a palavra certa num texto, para argumentar em torno de um título que não lhe merecia grande consideração: fê-lo comigo, durante anos, mesmo quando assumi o cargo de editor da revista, por duas vezes. Tornámo-nos amigos como se tornam muitos colegas de trabalho, sem grande intimidade mas com admiração. O Daniel era garantido: estava lá, sempre, para quando era preciso.
Tinha sempre uma história para contar. Às vezes repeti-as. Era falador e resmungão. Gostava de falar da família. Fumava muito e essa terá sido uma das razões para o aparecimento de um cancro, há uns meses, situação que nunca escondeu e que enfrentou com coragem. Quando soube da sua doença, com a timidez com que sempre abordo estes assuntos, procurei-o e falámos. Estava optimista, enfrentou-a com a determinação que lhe reconheci noutros casos, como daqueles que tratou nos vários cargos que ocupou em organizações – Sindicato de Jornalistas, Clube de Imprensa, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista – da nossa vida profissional.
Soube hoje, pela internet, da sua morte no Hospital de Santa Maria. Vou sentir a tua falta, Daniel. Um abraço amigo.