Penso que podemos distinguir dois tipos de liberdade: a interna e a externa. Diria que a primeira existe quando não existem bloqueios do pensar; a segunda, quando não existem bloqueios (ilegítimos) do agir. Introduzo este último parêntesis porque o pensamento pode ser totalmente livre, mas a acção não. Segundo a minha concepção, esta deve ser limitada por aquilo a que já chamei o “dever central”, ou seja, a obrigação de não se causar dano objectivo a outrem (não vou alongar-me sobre este meu conceito). Seguindo este raciocínio, e porque o pensamento não pode causar dano a outrem, entendo que a liberdade “interna” não deve ser limitada.
Após esta introdução, poderia pensar-se que só interessa reflectir sobre a liberdade “externa”, por não haver muito a dizer sobre a outra. Porém, não acho isso. Por duas razões.
Em primeiro lugar, porque a liberdade do pensamento é menos perceptível. Quero dizer que as pessoas se apercebem mais facilmente da falta de liberdade “externa” do que da “interna”. Mais facilmente tomam consciência de que estão impedidos de fazer isto ou aquilo. No caso de as pessoas viverem em regimes não democráticos, essa consciência torna-se ainda mais clara. No entanto, raros são os indivíduos que têm noção da sua falta de liberdade de pensamento. Como se diz das pessoas mais limitadas não terem a percepção das suas limitações.
Mas que privação de liberdade é essa? De que estou eu a falar?
Todos nós temos convicções, ideias feitas, pré-conceitos, crenças, que se criaram durante o nosso processo de crescimento e aculturação. Por essa razão, é raro lidarmos com uma qualquer questão sem apriorismos. Como posso discutir ou colocar em causa o meu deus, o meu ídolo, o meu pai, se tenho uma fé inabalável neles? Como podemos nós duvidar de uma mulher ou de um filho que amamos? Ora, a minha ideia é que estas convicções íntimas e inconscientes limitam a nossa liberdade de pensar. E limitam tanto mais quanto mais fortes forem. A aculturação tem como objectivo integrar os indivíduos numa determinada cultura e dar-lhes referências de vida, uma identidade que possam partilhar com os indivíduos que os rodeiam. Quando este processo termina, torna-se muito difícil percebermos até que ponto somos o produto da formação que tivemos, na família, na catequese, na escola, num círculo restrito de pessoas que foram a nossa referência. Não compreendemos o quão formatados estamos, como somos prisioneiros de uma determinada concepção do mundo, não sendo quem quisemos ser mas quem outros quiseram por nós. A cultura dá-nos uma “verdade” e convence-nos de que não precisamos de procurar a nossa, levando-nos a pensar que já a possuímos.
Mas há um segundo aspecto a considerar: a liberdade do pensar condiciona fortemente, na minha opinião, as percepções relativas à liberdade “externa”. Muitas vezes, não sinto a falta de liberdade para agir de certa maneira, precisamente porque nem sequer me passa pela cabeça agir dessa maneira. No tempo da ditadura, isso foi muito evidente: muitos foram os que não se aperceberam de que viviam sem liberdade externa porque lhes faltava liberdade mental, interna, para chegar lá. Por outras palavras, sem liberdade do pensar não pode existir uma avaliação realista sobre a liberdade do agir. Porque, sem essa liberdade primeira, não é possível reflectir, comparar, duvidar, indagar, descobrir.
Pergunta: como lutar, então, pela tal liberdade do pensamento? Não quero dar conselhos, mas vou contar o que se passou comigo.
Quando tinha 12 anos, e era aluno do Liceu de Camões, tive a sorte inenarrável de encontrar um professor que nos iluminou com essa ideia “absurda” de precisarmos de construir a nossa própria filosofia. Vivíamos num país amordaçado (foi em 1969) e, um dia, surge um louco furioso a dizer-nos que devíamos querer saber sempre os porquês de tudo, que não nos devíamos necessariamente sujeitar ao que nos impunham, nem aceitar sem interrogação as teses que nos impingiam, que devíamos procurar a verdade acima de qualquer outra coisa, e a empurrar-nos na direcção da nossa individualidade, no urgente de nos esforçarmos pela sua construção, usando palavras para nós longínquas, como a grandeza do ser, a beleza e a liberdade.
Esse homem chamava-se Vergílio Ferreira. Em Novembro desse ano, acabou um livro (Nítido Nulo), onde escreveu: “sê livre, pensa depois”. Esta foi, portanto, uma das muitas ideias que, enquanto escrevia, partilhou connosco nas aulas. Não foi preciso dar exemplos dos grandes homens que agiram de acordo com ela, como Galileu, ou Darwin; nem mesmo detalhar as ideias dos seus próprios professores em espírito, como Nietzsche ou Sartre, que lha ensinaram. Nós éramos ainda muito novos. Mas, lá dentro de nós, era óbvio que a Porta acabara de se abrir.