Naquela tarde, o inspetor Óscar Campos dormia a habitual sesta no escritório de sua casa, em Lourenço Marques. Montara ali o seu quarto de dormir. Pousada sobre o peito estava uma pistola. Dormia assim, sem intenção de se defender. Guardava a arma no próprio corpo com receio de que a esposa, Vitória Nogueira Campos, cometesse uma loucura e disparasse contra si mesma. Vitória regressara do asilo psiquiátrico e ele, não sem remorsos, maldisse o dia em que ela teve alta. Agora, a demente Vitória, essa que já fora a sua doce Vicky, recuperava em casa, sob cuidados de um enfermeiro negro. A loucura anda de mãos dadas com os demónios: ambos laboram no escuro, sem hora nem lugar. Por isso, o enfermeiro vigiava a paciente, de dia e de noite. Não podia deixar de ser irónico: a esposa dormia no quarto à parte com um formoso negro, e o marido dividia o escritório com uma graciosa negra, a empregada Maniara Mafumo.
Nessa tarde, Óscar Campos acordou estremunhado, uma baba espessa escorrendo pelo queixo:
– Temos que voltar, temos que voltar para Moçambique!
A empregada sacudiu o patrão pelos ombros e tratou de o acalmar:
– Voltar? Estamos aqui, nunca saímos de Moçambique.
– Precisamos de voltar – repetiu Campos.
O inspetor acabara de ser assaltado por premonitórios pesadelos. Sonhou-se velho, mais idoso do que o seu próprio pai. E viu-se a si mesmo, nos fins dos tempos, sentado na margem do rio Chiveve com os pés afundados na lama escura. Contemplou os horizontes, para confirmar uma angustiante suspeita: ele era o único branco em todo o continente africano. Os indígenas tratavam-no como uma relíquia viva. Era uma estátua, protegida por um enorme sombreiro. Os negros deitavam-lhe moedas e limpavam-no das sujidades das aves. De repente, daquele mesmo pouso, Óscar Campos viu o enfermeiro negro passeando de braço dado com a sua esposa. O inspetor tentou erguer-se, mas tropeçou nos próprios pés. Só então sentiu o peso de uma pedra que do peito lhe pendia e onde se podia ler a seguinte inscrição: “Último colono europeu em terras africanas.”
A empregada sossegou o agitado patrão, limpou-lhe as babas, mas ele reagiu, agressivo: – Os pés, rapariga, limpa-me os pés que estão cheios de lama. – A empregada estava habituada aos devaneios do patrão. Inconsolável, há meses que o inspetor Óscar não parava de se lamentar: – Sei tanto da vida dos outros, conheço-lhes os mais desprezíveis segredos e, afinal, desconheço o que se passa na minha própria casa. E menos ainda sei do que acontece nesta minha pobre cabeça. Espreita-me os ouvidos Maniara, que eu sinto escorpiões rastejando dentro da cabeça.
Dormir longe do quarto de casal não fazia grande diferença. Afinal, ele nunca estivera muito próximo da esposa. Naquele tempo, essa era a norma: escolhia-se uma esposa devota, não uma fogosa amante. Ser marido era uma profissão e requeria mais disciplina do que paixão. O alheamento do inspetor agravou-se com a doença da mulher. Vitória convertera-se numa desconhecida e, por respeito a essa estranha, Óscar Campos passou a recolher-se num outro leito, instalado entre estantes e armários do escritório. Demorava-se o mais possível no emprego, inventando e dilatando assuntos. Houve noites que dormiu no gabinete de trabalho, a meia dúzia de metros dos prisioneiros. Às vezes dava-lhe uma vontade infinita de ligar para casa. Não valia a pena. Vitória não atenderia. E o negro enfermeiro era mudo. Assim, tinha sido combinado com o diretor do asilo psiquiátrico. O enfermeiro podia ver e ouvir o que em sua casa se passava que dele nunca ninguém saberia nada. A boca do desgraçado era uma tumba, negra e funda como o continente africano. Essa condição de silêncio era, afinal, o que ele mais temia: se fosse necessário interrogar o preto, como poderia fazer um mudo falar? Como levá-lo a confessar sobre a natureza da assistência que, nas suas longas ausências, ele concedera à esposa? Dizia-se entre os seus colegas da polícia que o sacripanta do negro tinha superado – e muito – o que se espera de um enfermeiro.
E assim se passaram meses. Contra todas as recomendações médicas, Vitória engravidou. Contra todas as previsões, teve uma gravidez feliz. O marido não suportava essa felicidade. E menos ainda sabia lidar com a suspeita: que filho seria aquele que ia nascer? Que cor da pele a criança exibiria como prova irrefutável e irreversível da sua condição de esposo traído? Durante a gravidez, mais e mais o inspetor se refugiou na solidão do escritório. Ali se ocupava a desenhar o mapa dos regulados do distrito de Inhaminga. Construía aquela preciosa cartografia a partir de dezenas de contribuições de brancos e negros, gente que nunca mais poderia rever. A guerra não se ganha com armas, era a convicção de Óscar Campos. É nos mapas que se vencem as batalhas. Desdobrava o mapa, afixava-o numa parede e ficava tempos infindos perante a sua obra, como narciso contemplando um espelho.
Certa vez, ao chegar a casa, Óscar sentiu cheiro a fumo. No fundo do cesto do lixo, jazia, irreconhecivelmente contorcido, o seu glorioso mapa. No tampo da mesa, descobriu uma nota com a caligrafia da esposa. Leu em voz alta. “Odeio esta terra e agora nada resta dela senão um papel chamuscado. Incendiei Moçambique para apagar de vez os teus delírios com gloriosas batalhas. Preferia, confesso, que me tivesses traído com outra mulher. Haveria, nesse caso, um ato de amor.”
Assim que terminou a leitura, o inspetor foi tomado pela fúria. – Vou mandar-te para a metrópole! – proclamou, aos berros. Vitória compareceu, curiosa, e reagiu com displicência: – Pobre de ti, não percebeste que nunca saíste de Portugal? Nenhum de nós saiu de lá. Só há um mapa, meu querido marido, e está desenhado dentro dos teus olhos.
Nessa noite, o inspetor deu início a uma cerimónia privada que se iria repetir até ao final da sua vida. Desenvencilhou-se da roupa e dos sapatos. Sentou-se no chão, todo nu, e sorveu generosos goles de aguardente. Depois, deitou-se e despejou o resto da garrafa sobre o corpo colado ao chão. A cachaça encharcou-lhe o peito, os braços e as pernas, como se bebesse pelos poros, como se o corpo inteiro não fosse senão uma boca. O frio do álcool invadiu todos os seus recantos e, da ressequida múmia em que julgava ter-se convertido, renascia a carne viva de uma outra criatura. Adormeceu envolto num cheiro ácido de taberna. Naquele momento, sentiu-se próximo dos negros que, antes de partilhar a bebida, entornam umas gotas no chão para lembrar os mortos. Óscar Campos não tinha outro chão senão o seu próprio corpo.
(Crónica publicada na VISÃO 1403 de 23 de janeiro)