“Vou ligar o churrasco, porque tenho o privilégio de ter um”. E que privilégio, senhora que acaba de ser entrevistada no telejornal de um qualquer canal generalista.
O apagão obrigou-me a levantar da secretária e verificar o quadro elétrico, o burburinho do corredor do prédio fez-me abrir a porta de casa para encontrar a reunião de condóminos em concílio de emergência extraordinário, como se estivessem a discutir o que fazer ao anel.
A primeira pedra foi atirada à Junta, ao que, inevitavelmente, alguém acrescentou os queixumes sobre o degradante aspeto dos jardins. Logo de seguida, o 3º dto. anunciou que a filha, que estava a trabalhar em Madrid, também se encontrava sem luz. Pensei imediatamente no maravilhoso jogo do quarto escuro que iria ser jogado a nível ibérico. “Isto foram os russos. Já vi isto nos filmes”, chutou o 6º esq. acompanhado de sopros desesperados. Voltei para dentro, com a reconfirmação de que a gestão condómina nunca será uma vocação.
Na impossibilidade de trabalhar, ponho-me a ler. No livro “Almoço de negócios em Sintra”, de que desde já ofereço a mais veemente recomendação, o holandês Gerrit Komrij oferecia um retrato que só os estrangeiros, com a distância que lhes é própria, conseguem fazer do nosso país, cómico como ternurento, onde manifestava a tese que em Portugal ainda existiam casas “a sério” como nos desenhos pueris. Gostei da imagem que me embalou para uma sesta.
Acordo sem rede e pouca bateria e decidi ir dar uma volta de carro. Lisboa estava feita nesta grande casa “a sério”, onde as crianças brincam no jardim verde, as casas brancas têm cada uma a sua chaminé com fumo cinzento e o sol está amarelo e cor de laranja. Dirijo-me onde habitualmente me reúno com amigos, numa perpendicular à Avenida de Roma, no cruzamento da Frutalmeida, vazio. Decido, então, ir à janela de uma amiga que vive a uns meros 100 metros do café. “Maria! Maria!” – nada. Uma senhora com pronúncia brasileira veio à janela com um sorriso de orelha a orelha:“Vá-se embora, que ela não quer nada consigo!” Ri-me. Pego no carro, arranco e desço a Avenida de Roma. Com os semáforos apagados, reinava a cerimónia. Ninguém tinha pressa às 18h30, mas sei que durante o dia não foi bem assim. Àquela hora, as ruas estavam cheias de pessoas e vazias de carros. Era a bola de vólei numa mão e a guitarra na outra, era a cerveja de um lado e a mão da namorada do outro.
Sem rumo, sem destino, abro por completo as quatros janelas do carro para deixar que aquele éter da “hora dos mágicos cansaços” perfumasse o carro. Sempre em segunda, a um ritmo característico das coisas belas, continuo a descer a Avenida de Roma, engatando na Manuel Maia, onde o Técnico, imponente, observa a multidão que aproveitava o ar do tempo na Alameda. Os piqueniques multiplicavam-se e as toalhas coloriam a relva verde. Já na Almirante Reis, um transeunte de direitíssimas costas realizava os seus sonhos de menino e servia com toda pompa e circunstância de polícia sinaleiro. Os olhares cruzados entre condutores diziam tudo. “Passe lá, minha senhora”, pensava eu, acompanhando com um gesto de mão. Almirante Reis abaixo, viro na Portugália para casa de um amigo, onde estaciono o carro em segunda fila. Na porta do prédio, uma multidão reunia-se entre sons de rádio e cervejas partilhadas, arquejadas por bolas que sobrevoavam os céus.
Subo, bato à porta e encontro uns outros tantos. O barulho festivo que se seguiu era sinónimo da realização comum de que todos tínhamos tido a mesma ideia. Sem qualquer comunicação peregrinámos na mesma direção, com o sucesso de encontrar o pote de ouro na final do arco-íris. Já se pensava em jantar, pelo que se reuniram, então, os mantimentos disponíveis. O arroz juntou-se a uns ovos com uma tarte de frango que se estragaria inevitavelmente, e fez-se a multiplicação dos pães e dos peixes. Faltava a cerveja. Descemos então à rua para encontrar o estabelecimento do jovem paquistanês Noor, a quem prometemos que pagaríamos assim que os cartões funcionassem. Pouco ou nada o preocupou, talvez pela frequência com que utilizamos o estabelecimento para o mesmíssimo fim, mas certamente porque Noor percebeu perfeitamente o seu papel naqueles tempos de guerra. Abraçámos o homem, que guardou qualquer emoção para si.
Sob os arcos das portas, namorava-se e lia-se; à porta do 96, via-se um rapaz com não mais de 25 anos a escrever sobre fita-cola “Maukie, fomos para tua casa, anda lá ter! : )”. Subimos e enchemos os nossos copos de cerveja pelo grande Noor fornecidos.
Como estava bonita Lisboa naquele momento. A promessa de uma noite estrelada começava a entusiasmar os ânimos. Como seria bom que aquilo que estávamos a viver se prolongasse, a nós que vivíamos no privilégio de não ter assim tão grandes responsabilidades. Como seria bom que aquele povo, poucas vezes como naquele momento, e muitas outras vezes como Sísifo, parasse de subir a colina, respirasse fundo, e absorvesse o pôr-de-sol numa dança sem fim entre Portugal mediterrânico e o Portugal atlântico; como seria bom que Sísifo largasse de uma vez a pedra que o condena à condição de escravo e fosse poeta como naquelas horas tantos foram.
Um barulho brusco precipitou-nos todos para a varanda: estariam a acontecer confrontos de uma qualquer multidão? As luzes ligaram-se e o barulho apoteótico ao qual, inevitavelmente, nos juntámos, celebrava o fim do apagão. Ouvia-se alegria e “Portugal! Portugal!” Abraçámo-nos e comentámos quão bom tinha sido.
Poderia dizer que se tinha feito luz, finalmente, mas a verdadeira luz vivia-se há já umas horas.
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