Longe vai o tempo em que Stanley Kubrick chocou o mundo com a sua Laranja Mecânica. Com cenas perturbadoras de extrema violência física e sexual, este filme de 1971 veio trazer para o grande ecrã muitos dos medos e temas sociais debatidos naquela época, particularmente centrados em fenómenos crescentes de delinquência juvenil em contextos de gangues e atuação em grupo. Não era um tempo de internet nem de redes sociais, mas em que a arte cinematográfica teve o condão de provocar o choque e de alertar para um importante problema comunitário.
Por estes dias, a série Adolescência veio trazer a milhões de espectadores um confronto direto com o contexto digital em que estão mergulhados muitos jovens, bem como para os perigos que daí podem advir. Trata-se de um verdadeiro serviço público, já sobejamente comentado, mas que impõe, agora, que façamos um exercício de mergulho na realidade. Naquela dimensão de que facilmente nos alheamos, mas em que não pagamos bilhete nem mensalidade. Aquela componente das nossas vidas que nos devia chocar verdadeiramente e que nos devia mobilizar enquanto sociedade. Apertemos, por isso, os cintos, porque os sinais não são animadores.
Durante esta semana foi noticiado que o mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) assinala a existência de crianças e jovens portugueses a serem aliciados e mobilizados por grupos de jiadistas e de neonazis, através da difusão de conteúdos extremistas on line, em plataformas de gaming, e através da presença de influencers que lideram movimentos que propagam apelos à violência geradores de uma rápida radicalização de indivíduos cada vez mais jovens. Do mesmo modo, o RASI vem colocar a descoberto a presença crescente de crianças em grupos de WhatsApp e Discord para partilha de ficheiros de conteúdo sexual, pornográfico e de violência extrema.
O mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) assinala a existência de crianças e jovens portugueses a serem aliciados e mobilizados por grupos de jiadistas e de neonazis, através da difusão de conteúdos extremistas on line, em plataformas de gaming, e através da presença de influencers que lideram movimentos que propagam apelos à violência geradores de uma rápida radicalização de indivíduos cada vez mais jovens
Tudo isto se está a passar em Portugal neste preciso momento, sendo que importa ter presente que a prática de crimes por jovens inimputáveis em razão da idade, isto é, até aos 16 anos de idade, também implica uma reação por parte do sistema de justiça, designadamente através do recurso ao Processo Tutelar Educativo, cuja medida tutelar mais gravosa consiste no internamento em centro educativo. De acordo com o relatório de Estatística Mensal dos Centros Educativos, elaborado pela DGRSP, em dezembro de 2024: a medida de internamento teve um crescimento de 33,33% nos últimos dez anos; o número de jovens internados cifrava-se em 147; a taxa de ocupação total dos centros educativos situava-se em 93,04%; os crimes mais praticados correspondiam a crimes contra as pessoas (60,77%); sendo de assinalar que as estatísticas também contam com dois crimes de homicídio voluntário consumado.
Mas se a criminalidade em contexto juvenil sempre existiu, a verdade é que, nos dias de hoje, o acesso livre e, em muitos casos, descontrolado a plataformas digitais onde reina a exaltação dos discursos de ódio, da xenofobia, da homofobia, do racismo, da misoginia, da violência sexual e dos extremismos nas suas mais variadas formas, veio generalizar a probabilidade de ocorrências graves independentemente do background de cada um. Dito de outra forma: uma desgraça pode acontecer a qualquer filho – seja como agressor, seja como vítima – e a qualquer família, por mais estruturada que se tente manter.
Na verdade, acesso não supervisionado à internet, em geral, e o uso de redes sociais, em particular, já ultrapassou em muito um potencial lesivo limitado ao ciberbullying. Ao contrário, chegam com excessiva frequência aos tribunais casos em que publicações nas redes foram a ignição para espancamentos por grupos de jovens a outros pares ou em que o diálogo com desconhecido potenciou um aliciamento para encontros sexuais por parte de crianças em idades muito precoces, com fugas de casa e saídas sem conhecimento dos pais ou até para inserção em grupos que operam autênticas “lavagens cerebrais” de radicalização infantil. Também pela mesma via, a pornografia tem vindo proliferar em idades cada vez mais baixas, sendo comuns os casos de jovens abusados ou abusadores, para quem a visão da sua própria sexualidade é já, desde muito cedo, uma imagem extrema em que se queimam irremediavelmente etapas do crescimento e da formação salutar da personalidade, obliterando-se parte da infância com passagem direta, e sem freios, para o mundo adulto na sua versão mais grotesca.
É neste contexto que, por exemplo, a Nova Zelândia lançou recentemente uma campanha pública intitulada Keep it Real Online, incentivando ao uso da internet de forma cuidadosa. Nessa campanha, o objetivo é consciencializar os pais e a comunidade educativa para a segurança das crianças e adolescentes na internet, abordando temas como o ciberbullying, o sexting, a pornografia, a privacidade e os predadores on line, incentivando a conversas abertas entre pais e filhos sobre esses assuntos. A campanha recorre a vídeos diretos e humorísticos em que personagens, representando atores de filmes para adultos, vítimas de abuso ou predadores sexuais, aparecem de surpresa na casa de uma família para a alertar sobre o perigo da utilização que os respetivos filhos estão a fazer da internet, muitas vezes a partir de casa, através quer de dispositivos próprios quer dos seus pais.
Se temos a capacidade de nos chocarmos com a ficção, então choquemo-nos também com a realidade. E se a arte e a ficção tiverem o condão de nos ajudar a perceber melhor a realidade, importa que sejamos consequentes e não deixemos que o efeito se perca. Urge que todos nós, enquanto comunidade, sejamos capazes de nos consciencializar para a necessidade de monitorização das redes sociais das nossas crianças e jovens; de educar para a defesa da privacidade e para os perigos da exposição excessiva; de definir limites de uso, incentivando atividades offline, como o desporto, a música, a leitura ou o convívio social; de estarmos sempre disponíveis para um diálogo aberto e sereno com os filhos e educandos e de incentivarmos essa comunicação; de darmos o exemplo enquanto educadores, demonstrando hábitos saudáveis no uso da tecnologia e evitando a dependência excessiva dos dispositivos eletrónicos; de estarmos atentos aos sinais de alerta e às mudanças comportamentais, como o isolamento, a ansiedade ou as alterações de humor; de criarmos condições para o reforço da auto-estima, sempre em estreita comunicação com as comunidades escolares junto das quais as crianças e jovens passam grande parte do seu tempo.
Cientes assim de que não se pode permitir que a educação seja assegurada pelo desconhecido que está do outro lado de um qualquer dispositivo, mesmo que à boleia de uma série de televisão, acordemos então para esta realidade para que nunca nos esteja reservado aquele papel final em que um pai, agarrado a um peluche do filho, lhe pede desculpas porque podia ter feito mais.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.