Imagine o seguinte. Vai a caminhar para casa, por entre a paisagem de betão da cidade, após um longo dia de trabalho. Os olhos presos ao chão, os ouvidos alheios ao mundo, enquanto a mente acelerada revisita memórias incómodas e se perde em preocupações. Enredado(a) nesse turbilhão, sente-se ansioso(a) e desconectado(a) do que o rodeia. Até que, por um instante, ergue o olhar. O sol escondendo-se no horizonte pinta as ruas de um dourado cálido, como um abraço morno. O seu olhar e a sua atenção prendem-se então numa pequena folha que se desprende de uma árvore próxima, flutuando no ar, guiada como por uma mão invisível. É apenas um momento, breve e efémero, mas algo muda dentro de si. A sua mente acalma-se, e um sentido de quietude apodera-se do seu ser.
Num mundo onde as cidades avançam impiedosamente sobre a terra fértil, e os dias correm a um ritmo cada vez mais vertiginoso, experiências como esta – de interação consciente com a natureza ao nosso redor – podem ser bálsamos preciosos para a nossa saúde mental. Esta é a essência da intervenção “Liga-te à Terra!” – um programa de 30 dias implementado no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS-UP), e concebido para apoiar a saúde mental e o bem-estar dos estudantes, reconectando-os à natureza urbana.
Natureza urbana: um poder restaurador no coração da cidade
Nas grandes cidades, a natureza pode quase parecer um sonho distante. Contudo, ela está lá – resiliente e discreta, convidando-nos, subtilmente, para um encontro transformador com o seu poder restaurador.
O ser humano sempre intuiu o poder terapêutico da natureza, e hoje a ciência confirma-o: estar em contacto com a natureza pode melhorar significativamente a nossa saúde, física e mental. No caso particular da nossa saúde mental, estudos recentes sugerem que não é o tempo que passamos na natureza que determina os benefícios que colhemos, mas sim o modo como interagimos com a natureza. Isto significa que estes benefícios podem emergir até mesmo nos espaços urbanos, se escolhermos prestar atenção e envolver-nos conscientemente com a natureza ao nosso redor. A intervenção “Liga-te à Terra!” focou-se nesta natureza urbana – uma árvore solitária, o canto de um pássaro, uma flor a desabrochar – e procurou explorar o seu poder restaurador.
A experiência: ligarmo-nos à Terra melhora mesmo a nossa saúde mental?
A intervenção “Liga-te à Terra!” foi testada em 65 estudantes durante o período de stress intenso que antecede os exames. Os participantes foram divididos em dois grupos: um grupo de intervenção e um grupo de controlo. Os estudantes do grupo de intervenção receberam uma tarefa simples: procurarem ligar-se à natureza presente nas suas rotinas diárias através de cinco possíveis “caminhos” (devidamente descritos e exemplificados), e escreverem, diariamente, duas a três frases sobre as suas experiências. Já os estudantes no grupo de controlo não receberam qualquer instrução, sendo apenas convidados a manter as suas rotinas habituais.
Cinco caminhos?
A literatura científica aponta para nove tipos de relação que podem emergir do contacto com a natureza. Cinco deles tendem a gerar um sentido profundo de ligação emocional à natureza e pertença ao mundo natural – conceito usualmente referido pelos investigadores como “nature connectedness”. São eles: experienciar a natureza através dos sentidos, procurar e apreciar a beleza do mundo natural, reparar e acolher as emoções que ele nos inspira, celebrar e partilhar eventos e histórias sobre a natureza, e envolver-se em gestos de cuidado para com ela, por mais pequenos que sejam. Por outro lado, relações baseadas no medo, no domínio, na utilidade ou numa abordagem puramente científica tendem a criar uma desconexão em vez de promover ligação.
Os resultados da experiência
Os resultados da experiência realizada no ICBAS-UP foram notáveis. Após 30 dias, os participantes da intervenção “Liga-te à Terra” relataram níveis de stress e de ruminação – aqueles pensamentos negativos persistentes que parecem aprisionar a mente – significativamente mais baixos do que os dos seus pares do grupo de controlo. Além disso, os estudantes que participaram na intervenção mostraram um aumento substancial nos seus níveis de “nature connectedness”.
Curiosamente, estes benefícios emergiram sem que os estudantes do grupo de intervenção tivessem passado mais tempo em espaços naturais do que os seus pares no grupo de controlo. As experiências de ligação à natureza ocorreram no dia a dia – com uma árvore na calçada, um pavão à entrada da escola (sim, os pavões também frequentam a nossa escola!), um céu azul, uma nuvem carregada.
Ligação à Natureza e crise ambiental
A ligação à natureza tem implicações de tremendo alcance. A ciência mostra que as pessoas que se sentem mais ligadas à natureza (ou seja, que apresentam maiores níveis de “nature connectedness”) têm maior probabilidade de adotar comportamentos que beneficiam o planeta. Os níveis de “nature connectedness” medidos em vários estudos, contudo, tendem a ser inquietantemente baixos, particularmente em populações urbanas. É por isso que intervenções como a “Liga-te à Terra!” são tão necessárias. A sua relevância transcende a saúde mental individual. Ao promover a ligação à natureza estas iniciativas podem catalisar uma mudança cultural, impulsionadora de um futuro mais sustentável. Elas não são, por isso, apenas “remédios” para as nossas mentes sobrecarregadas; são, também, um fator-chave para enfrentar a crise ambiental.
No estudo realizado no ICBAS-UP, não se verificou um aumento expressivo nos comportamentos pro-ambientais dos estudantes que participaram na intervenção – muito possivelmente devido ao momento em que o estudo foi realizado: imediatamente antes da época de exames. O aumento observado nos níveis de ligação à natureza destes estudantes, contudo, indica que a semente foi lançada. Novas investigações são agora necessárias, junto de mais e maiores grupos, eventualmente até numa campanha nacional, para monitorizar as potenciais mudanças comportamentais que podem brotar da ligação promovido por esta inovadora intervenção.
A folha que nos liga
Tudo pode começar com a tal pequena folha desprendendo-se da sua árvore. Um momento fugaz no nosso caminho para casa que nos chama a atenção para fora dos nossos pensamentos e para o momento presente. Essa folha, flutuando suavemente até ao chão, pode parecer insignificante, mas tem o poder de desencadear uma mudança não apenas no nosso estado mental, mas na nossa perceção do mundo e no nosso compromisso em protegê-lo.
A saúde das nossas cidades, das nossas mentes e do nosso planeta está profundamente entrelaçada. Estes pequenos encontros quotidianos com a natureza urbana podem inspirar as ações críticas para a saúde do nosso planeta. Cada folha que nos chama a atenção, cada nota musical do canto de um pássaro por entre o ruído urbano, pode servir de ponte entre a nossa saúde e a saúde do planeta. Se conseguirmos nutrir esta ligação, poderemos acionar um movimento poderoso o suficiente para enfrentar os desafios ambientais que se avizinham.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.