No Orçamento do Estado para 2024, se há algum ponto em que os analistas sem agenda política conhecida estão de acordo é que se trata de um documento “prudente”. Bastante centrista, este Orçamento poderia perfeitamente ter sido apresentado pelo PSD, pelo menos nos objetivos (e não, necessariamente, na forma como se chega a eles). Por isso é que, à falta de melhor para dizer, Luís Montenegro apelidou o documento de “muito bem vestidinho, muito pipi”. Além da ginástica fiscal e da dialética sobre os impostos, o Orçamento traz-nos três novidades importantes. Primeiro, propõe um excedente orçamental, previsão inédita em democracia, embora este seja um desiderato já atingido uma vez (com Mário Centeno) e que pode ser inesperadamente alcançado, de novo, no exercício de 2023. Em segundo lugar, admite uma redução da dívida para menos de 100% do PIB, o que é uma marca “física e psicológica” de primordial importância. Em terceiro lugar, a constituição de uma espécie de mealheiro, a que alguns já chamam o “fundo Medina”, pensado para precaver uma “necessidade” futura do País – o que, à primeira vista, até parece correto e de senso comum (já lá vamos).
É uma discussão bizantina saber se o Governo dá com uma mão, na redução do IRS e, portanto, da retenção de parte do salário na fonte, e tira com a outra, reforçando taxas e impostos indiretos, deixando às famílias os critérios da gestão dos seus rendimentos, consoante os respetivos consumos. Contas feitas, a oposição brada que o Executivo aumenta a carga fiscal e Fernando Medina protesta que “é falso”, que o que aumenta é a receita: afinal, um crescimento da economia, ainda que modesto, e uma situação de baixo desemprego fazem crescer o valor dos descontos subjacentes. Isto, mesmo que os impostos diminuíssem – e o inverso, como se viu durante o período da Troika, também é verdadeiro. O que o Governo faz, na linha da “escola Centeno”, é uma opção política: onde uns cortaram pensões e salários e congelaram carreiras, provocando uma contração no consumo e motivando protestos generalizados, outros preferem reforçar o rendimento na fonte, potenciando o consumo privado e indo buscar as receitas fiscais a esse consumo – sem que os cidadãos notem o truque, na folha salarial: o crescimento da procura interna estimula o aumento de receita por via dos impostos indiretos. Na verdade, ninguém dá nada a ninguém…
Mas o “pé-de-meia” de Medina merece uma análise mais fina. O excedente orçamental investido nesse “mealheiro” não chegará a três mil milhões de euros. Segundo o ministro das Finanças, assim, o País estará mais bem preparado para enfrentar uma diminuição futura dos fundos europeus, através de eventuais alargamentos da União, e também a extinção das verbas provenientes do PRR – que não é eterno. Pensando bem, mesmo que outros excedentes (impossíveis de garantir) façam aumentar um pouco o pecúlio, o nível da “ameaça” prevista por Medina faz com que o excedente guardado não chegue nem para a cova de um dente. Ao mesmo tempo, este dinheiro deixa de ser aplicado na melhoria de serviços públicos insuportavelmente degradados, ou em incentivos às empresas – que, ao contrário das famílias, parecem ausentes das preocupações do Orçamento. Ora, às vezes, bons gastos e investimentos previnem melhor uma “necessidade” futura do que a atitude salazarenta de guardar o dinheiro debaixo do colchão. Vale a pena, a propósito, recordar o período do Portugal governado por Salazar: tínhamos dívida no zero, reservas de ouro que faziam inveja a muitas nações mais desenvolvidas – mas cidades cercadas de barracas, pessoas de pé-descalço e, sobretudo, um analfabetismo endémico, que acabou por custar muito mais dinheiro ao País, em atraso e crescimento, do que aquele que tinha sido aferrolhado.
Há, por outro lado, uma falácia paralela: o Governo afirma que os salários terão crescido acima da inflação – e quer nas prestações sociais, quer no aumento das pensões, reconheça-se que o Executivo continua a fazer um esforço correspondente. Só que, nestas contas, não entram as subidas das taxas de juro, o que, para famílias endividadas, como são todas as que possuem casa própria, significa que os possíveis ganhos salariais, acima da inflação, são “comidos” pelos juros pagos à banca – e não chega. E é extraordinário que, neste quadro, os impostos extraordinários pagos por empresas que tenham beneficiado de lucros excessivos, decorrentes da inflação (uma medida fiscal que caiu no esquecimento…), não se estendam aos bancos, que foram as “empresas” que mais lucraram com o fenómeno.
Golpe de vista
Aterragem forçada
O PR justificou o veto do diploma de privatização da TAP por não terem sido esclarecidos, pelo Governo, três aspetos. Um deles tem que ver com “o papel futuro do Estado” numa companhia estratégica. Questionado sobre se o PSD acompanha as dúvidas do Presidente, Miguel Pinto Luz respondeu: “Naturalmente, estas e muitas outras.” É curioso que, quando o PSD privatizou a TAP, a questão não tenha sido um problema e que o PR da altura, Cavaco Silva, nem tenha pestanejado.
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