É vulgar recorrermos ao exemplo do frango e dois comensais para fazer ver que, se um deles comer o frango inteiro e o outro não comer nada, temos um resultado muito diferente de cada um comer o que é a média, isto é, meio frango.
A descrição estatística corresponde a dois homens alimentados, mas a realidade é muito diferente: um permanece faminto e o outro fica saciado. Moral da história: a estatística tem limites na descrição da realidade.
Em 1935, Erwin Schrödinger, cientista alemão brilhante e de enorme importância no domínio da física e da química pelos seus trabalhos em mecânica quântica, foi mais sofisticado e criou um exemplo mais paradoxal e com algum do seu ofício, a física, à mistura.
Imagine-se um gato fechado, durante 1 hora, numa câmara opaca onde existe um dispositivo com uma ampola de ácido cianídrico, que pode ser quebrada por um mecanismo dependente da desintegração radioativa de um composto presente em quantidades vestigiais na câmara. Existe uma probabilidade de 50% de um dos átomos se desintegrar durante aquele período de 1 hora, levando à quebra da ampola, com morte do gato. Naturalmente, existem também 50% de probabilidades de não ocorrer desintegração e o gato permanecer vivo. A descrição matemática para este sistema, com a incerteza inerente à natureza probabilística, incorpora nela o gato vivo e o gato morto, misturados ou alternados, em partes iguais.
Schrödinger inventou a história deste “seu” gato para demostrar o grau de abstração requerido pela mecânica quântica e quanto a sua adoção literal é absurda. Apesar disso, a história desorbitou e foi distorcida ao ponto de ser apresentada como demonstração de confabulações esotéricas, como se a mecânica quântica desse prova de que um gato pode estar vivo e morto ao mesmo tempo.
A experiência conceptual e hipotética, mais ou menos anedotária, criada para evidenciar as fragilidades de uma visão ortodoxa de um trabalho científico teórico, a mecânica quântica, acabou como locomotiva de muitas fantasias e de algumas correntes anticientíficas. A situação tornou-se tal que Stephen Hawking uma vez disse:
“Quando alguém menciona o gato de Schrödinger, saco da pistola”
Algumas ideias e realizações científicas popularizam-se, adquirem vida própria e entram no domínio da ficção e da fantasia, onde se tornam famosas. Assim foi com o famoso gato de Schrödinger. A Inteligência Artificial vai pelo mesmo caminho.
A visão que estamos a construir da Inteligência Artificial ameaça seguir as pegadas do gato de Schrödinger. Estamos a construir um imaginário que vai desorbitando da realidade, mais baseado no que o nome “Inteligência Artificial” sugere do que o que realmente é.
A ferramenta ChatGPT e as suas congéneres escrevem como um papagaio fala, sem saber o que diz. De forma que hoje nos parece sofisticada (mas em breve nos parecerá banal), articulam um discurso baseado em práticas de construção frásica e informação presente na internet. Mas informação não é conhecimento e reproduzir informação não é o mesmo que criar informação; saber falar não é o mesmo que saber o que se diz e, definitivamente, saber escrever não é o mesmo que ser romancista.
Consideremos um exemplo. Imagine-se um mundo sem jornalistas nem outros criadores de conteúdos originais, em que ninguém produz informação, existindo apenas canais retransmissores que circulam informação já existente. A velocidade de circulação pode tornar-se estonteante, as cambiantes das formas de apresentar a informação podem surpreender, mas, na essência, o mundo teria parado, sem novidades, isto é, sem evolução.
A internet seria carregada com cada vez mais cópias da mesma informação, que seria usada como reforço da mesma informação já depositada previamente, replicando fontes de informação sempre iguais. O resultado seria um mundo monótono, com uma norma cada vez mais dominante para cada assunto, em qualquer domínio da atividade humana.
A Inteligência Artificial sem a contrapartida da inventividade humana nas artes, nas ciências, na literatura ou no jornalismo, por exemplo, traz consigo o risco do cinzentismo, da normalização implícita, da atrofia das capacidades humanas. É aqui que nos devemos focar ao discutir o uso e impacto da chamada Inteligência Artificial nas nossas vidas.
Não nos iludamos com as nossas próprias fantasias e temores sobre aquilo que a Inteligência Artificial parece ser e os cenários que os guiões de ficção científica ditaram. Resistamos à tentação de extrapolar, como aconteceu com o gato ficcional de Schrödinger, que acabou como pasto de fantasmagorias esotéricas. Os equívocos começam com a ambiguidade do conceito “inteligência”, passam pela desconfiança ao “artificial” e não sabemos onde irão parar.