AS CALENDAS gregas, sabe-se, nunca existiram: as calendae romanas é que correspondiam ao primeiro dia de cada mês e os gregos não tinham sequer termo equivalente. Remeter alguma coisa para as calendas gregas era, durante o Império, o mesmo que anunciar «o dia de S. Nunca à tarde» ou o fim das «obras de Santa Engrácia».
Em Portugal, há um costume imemorial: o de adiar qualquer decisão para «momento oportuno»; para isto, também nós utilizamos a imagem das calendas. Às vezes, como no caso da incompreendida barragem do Alqueva, as calendas são tão proteladas que a conclusão da obra pode durar 30 anos; a consequência é que, quando as coisas estão prontas, a realidade já as ultrapassou há muito e a sua utilidade torna-se duvidosa.
Maus decisores, pouco ousados e falsamente ponderados, não nos limitamos a adiar apenas obras e investimentos de grande dimensão e, portanto, de ambição estratégica. A todos os níveis da vida social, a mesma inacção «criativa» permite que decorra tanto tempo entre a formulação da hipótese e a decisão que, por vezes, a questão deixou de ser premente. É o «deixar estar como está para ver como é que fica», justificável quando as condições não se encontram reunidas para tomar uma decisão irrevogável, mas que se torna autêntico mecanismo de bloqueio, quando aplicada sistematicamente ao governo de um país.
Temos com o tempo uma pendência por resolver. Tradicionalmente, a hora portuguesa comporta um atraso significativo sobre a «hora marcada», quer se trate de uma reunião de trabalho quer de uma simples função social. Um recente primeiro-ministro tornou-se efemeramente célebre (também) porque os seus atrasos a chegar ao que quer que fosse eram proverbiais; e tive em tempos uma secretária que aparecia uma hora e meia depois de eu ter começado a trabalhar. O seu problema quotidiano era com o esquentador…
Para o caso português, talvez conviesse inventar uma nova lei de Murphy: se alguma coisa puder ser atrasada, podes ter a certeza de que será constantemente atrasada. Recentemente, o presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (e um nome destes já é um
adiamento), António Fonseca Ferreira, revelou que os planos directores municipais de primeira geração (os que foram lançados na década de noventa) demoraram, em média, nove anos e meio a concluir. Fatalidade do sistema? Longe disso.
Fonseca Ferreira apontou o exemplo do PDM de Lisboa, que ficou concluído em três anos e meio; e acha possível, embora «complexo», conseguir que, em 2006, aquele prazo disparatado seja reduzido pelo menos para metade. Assim sendo, por que razão é que os primeiros PDM demoraram em média nove anos e meio? Porque as pessoas e os processos se perdem nos circuitos internos das entidades envolvidas, cuja teia foi
definida por aquele responsável como «labiríntica».
É claro que a pavorosa burocracia tem grande dose de responsabilidade neste atraso geral de vida. Para o que me interessa nesta crónica, a burocracia esconde uma realidade mental e cultural mais profunda: a da falta de capacidade de decisão, resultante da nossa ancestral indiferença ao valor do tempo. E nem sequer falo do valor material; a minha questão é a do valor intangível do tempo, a sua escassez, se quisermos, a
singularidade irrepetível de cada momento que se perde inutilmente.
Nas últimas semanas, este hábito antigo de adiar voltou a manifestar-se, sob formas veladas. Em primeiro lugar, porque a decisão do Governo de avançar com o TGV e o novo aeroporto foi anunciada com alguma reserva e, ainda e sempre, sob forma cautelosa: que não, que as obras só começarão na próxima legislatura, que por enquanto são só estudos e expropriações, etc. e tal. É a pior atitude, quando estão em causa decisões cujos efeitos se vão repercutir por gerações. Ou não, ou sim – «nim» é que não. Depois, veio aquela declaração do líder da Oposição, o qual, não querendo colocar-se contra decisões que até agradam a quase
todos os eleitos do seu partido, se limitou a pôr em causa a «oportunidade» da decisão – como se, após anos e anos de estudos, discussões, adiamentos e indecisões, houvesse mais tempo para protelar o inadiável.
Há muitos anos, assisti, no lobby de um hotel em Atenas, a uma cena inesquecível. Um grupo de turistas, entre o qual eu me encontrava, aguardava impacientemente desde as oito e meia da manhã que chegassem os carros de aluguer contratados de véspera. Às tantas, aquele texano inconfundível que, de chapéu de aba redonda na cabeça, esperava como nós, perdeu a paciência: dirigiu-se à mesa onde o funcionário da empresa, impávido e sereno, continuava a sorrir. Assentou os punhos na mesa e, do alto dos seus dois metros, disparou: «Mas não percebe que me está a fazer perder um tempo que eu não voltarei a viver?»
As calendas portuguesas são uma variação dramática desta forma de impotência: às vezes, tem-se a sensação de que estamos a perder um tempo que nunca há-de chegar.
Crónica de António Mega Ferreira de 21 de julho de 2005
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