Não obstante Portugal ser um dos países da UE mais críticos ao nível de incêndios florestais, com mais área queimada anualmente, totalizando juntamente com Espanha, França, Itália, Grécia e Turquia mais de 80% da superfície total queimada no continente europeu a cada ano, urge atentar, cada vez mais, ao problema dos incêndios urbanos.
Com uma tendência crescente, têm sido registados, à média anual, cerca de 10.000 incêndios urbanos, maioritariamente ocorridos em edifícios habitacionais, seguido dos segmentos industriais, hotelaria e restauração.
De entre os casos mais mediáticos destacam-se os do incêndio no Chiado (1988), que destruiu 18 edifícios, provocou mais de 50 feridos e deixou 2.000 pessoas desempregadas, e do incêndio em Tondela (2018), que apesar de mais localizado causou 46 feridos e 8 vítimas mortais.
Um incêndio é uma ocorrência de fogo não controlado, potencialmente perigosa para bens e pessoas, danificando estruturas e causando vítimas principalmente por inalação de fumos, e depois por queimaduras. A sua origem está normalmente na ação humana, devido a ignorância, imprudência ou negligência, em particular na utilização de equipamentos elétricos e nos atos de fumar e cozinhar, e tendem a acontecer em horários de noite e madrugada, representando maior risco para crianças e idosos.
Neste sentido, de modo a evitar ou mitigar danos materiais e humanos, surge a segurança contra incêndios em edifícios (SCIE) como área fundamental para uma proteção ativa e passiva.
A proteção ativa baseia-se na implementação de sistemas de deteção e alarme (e.g. detetores e centrais de alarme de incêndio), controlo e extinção (e.g. sistemas de desenfumagem e sprinklers), para avisar sobre um incêndio e impedir a sua propagação. A proteção passiva recorre a soluções construtivas para assegurar a estabilidade do edifício durante o incêndio e criar zonas seguras para a evacuação dos ocupantes e atuação dos bombeiros (e.g. proteção estrutural com materiais mais resistentes ao fogo; compartimentação, portas e selagens corta-fogo).
No sentido de reger e responsabilizar a atuação dos intervenientes no projeto, construção e operação de edifícios relativamente à segurança contra incêndios, durante mais de cinquenta anos existiu um quadro legal bastante amplo, composto por diversos diplomas (decretos-lei, decretos regulamentares, portarias, etc.), mas, contudo, bastante heterogéneo e dificilmente harmonizável, desfavorecendo assim a sua compreensão e aplicação. Procurando ultrapassar esta lacuna, surgiu em 2008 o chamado Regime Jurídico de Segurança Contra Incêndios (RJSCIE), por via do decreto-lei nº 220/2008 (posteriormente alterado pelos decretos-lei nº 224/2015 e 95/2019 e pela lei nº 123/2019), englobando um conjunto de disposições regulamentares de forma mais completa e estruturada.
O RJSCIE, que tem como princípios gerais a preservação da vida humana e do ambiente construído, torna-se mais ou menos exigente dependendo da utilização-tipo (total de 12, desde habitações a hospitais e lares de idosos) e da categoria de risco (de 1-reduzido a 4-muito elevado) dos edifícios e recintos, devendo ainda ser consideradas as disposições técnicas constantes do Regulamento Técnico de SCIE, aprovado pela portaria nº 1532/2008 (alterada pela portaria nº 135/2020).
A SCIE é uma disciplina transversal, ou seja, diz respeito a todas as especialidades de um projeto (arquitetura e engenharias), recaindo a responsabilidade pela sua aplicação e verificação sobre todos, desde os autores e coordenadores de projeto, quanto à conceção, aos empreiteiros, diretores de obra e de fiscalização, quanto à conformidade da execução. Relativamente à manutenção das condições de SCIE, em fase de utilização, remete-se a responsabilidade para os proprietários, administradores ou gestores dos edifícios, dependendo da situação, que inclusive devem adequadamente implementar as chamadas medidas de autoproteção (e.g. planos de prevenção e de emergência e registos de segurança). Dependendo do risco de incêndio, podem também ser obrigatórias formações específicas em SCIE, simulacros e inspeções com dada periodicidade, não ultrapassando os 2 e 3 anos, respetivamente.
Em geral, a entidade responsável por assegurar o cumprimento da legislação neste domínio é a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), que, sob a administração direta do Estado, também pode credenciar entidades para a emissão de pareceres, realização de vistorias e de inspeções, com base na portaria nº 64/2009 (alterada pela portaria nº 148/2020).
A não conformidade com os requisitos legais em vigor (e.g. conceção ou alteração de espaços, materiais e soluções de construção para desempenhos inferiores ao exigido; deficiente instalação, funcionamento ou manutenção de equipamentos de proteção; não execução de medidas de autoproteção e falta de inspeções) pode implicar, dependendo das obrigações de cada entidade e sem prejuízo da eligível responsabilidade civil ou criminal, processos contra-ordenacionais com coimas até às dezenas de milhares de euros, incluindo sanções acessórias como a interdição do exercício da atividade profissional (e.g. para autores de projeto, diretores de obra e de fiscalização) ou da utilização do edifício (e.g. para todos os habitantes, por incumprimentos do lado da administração do condomínio).
Não obstante, a aplicação do RJSCIE para edificações existentes pode revelar-se bastante complicada, principalmente mediante casos de maior vulnerabilidade que requeiram intervenções mais profundas, como em zonas mais antigas, onde a morfologia e a estrutura dos edifícios, o conhecimento técnico requerido e o investimento necessário são desafios principais.
A cultura de prevenção e proteção contra incêndios urbanos, além dos tendencialmente mais mediáticos incêndios florestais, deve ser amplamente promovida, a par de temas frequentemente desvalorizados mas de suma importância como, por exemplo, o risco sísmico, salientando-se casos como os das cidades de Lisboa e do Porto, cuja densidade e o estado geral do edificado são aspetos críticos.
Além das medidas de apoio que têm vindo a ser tomadas para os serviços nacionais de emergência (e.g. INEM e bombeiros), incluindo resoluções do conselho de ministros (e.g. resolução nº 13/2018) para realizar campanhas de divulgação de informação sobre o RJSCIE, urge atuar mais a montante, ao nível da proteção ativa e passiva, promovendo iniciativas baseadas no triângulo universidades-governo-empresas e particulares.
Existem já colaborações entre universidades e empresas, por exemplo, no sentido de avaliar e reforçar a resistência ao fogo de estruturas de betão armado com novos materiais, carecendo, contudo, de vontade e atitude política e privada para a sua implementação. A sensibilização da população é um fator crítico para responder à problemática do risco de incêndio, ao nível da prevenção e da própria reação em caso de emergência.
O modelo atual de verificação, manutenção e garantia das condições de segurança contra incêndio assenta no princípio da responsabilização dos proprietários, administradores ou gestores dos edifícios, consoante o contexto. No entanto, a administração pública, através dos seus serviços e organismos e dos municípios, desempenha uma função fiscalizadora fundamental. A não esquecer que a salvaguarda da segurança das pessoas e bens constitui uma função primordial e prioritária do Estado.
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