Um pacote de medidas para combater os aumentos dos combustíveis, a eventualidade de uma windfall tax para taxar os lucros caídos do céu, na área da energia, e um puxão de orelhas do presidente da Assembleia da República a um deputado do Chega foram as únicas novidades da discussão do programa do Governo. E nenhuma delas tem a ver com o próprio programa. Ao fim de dois dias de debate, que acompnhámos a par e passo – e de forma muito concisa – eis seis pequenas notas
1 – Um programa pró-forma
O Governo decalcou do seu programa eleitoral – um conjunto de generalidades pouco mensuráveis, vagamente calendarizáveis e de forma nenhuma quantificáveis, como é próprio dos programas eleitorais – o programa do Governo. Mas, de um programa de Governo, espera-se, normalmente, que seja mais concreto, para que possa ser mais verificado e escrutinado, ao longo de uma legislatura. Na verdade, perante o clima de incerteza espoletado pela guerra na Ucrânia e respetivas consequências económicas, o Governo não poderia apresentar um documento “definitivo”. Tanto fazia que fosse este ou outro, pois assim como tudo mudou desde 24 de fevereiro, data da invasão russa, também tudo pode mudar para a semana. António Costa agarrou-se, assim, a um argumento politicamente difícil de desmontar: “Como foi neste programa que os portugueses votaram, é este programa que vamos aplicar”. Mas ele tinha algo na manga para responder à atualidade. O que nos fornece a segunda nota.
2 – O trunfo das medidas para fazer descer o preço dos combustíveis
A principal medida anunciada por António Costa, a abrir o debate, nada tem a ver com o programa do Governo: baixar o ISP até ao ponto em que, no preço final, se reflita uma descida equivalente a uma taxa de IVA de 13%, medida em vigor até que Bruxelas dê luz verde a essa baixa do IVA. Medidas fiscais para combater o aumento dos fertilizantes e das rações – aqui, na tentativa de controlar o preço dos produtos alimentares – completam o ramalhete. Rui Rio demorou a reagir. Só ao segundo dia, nos corredores, “descobriu” que, mesmo assim, o Governo continua a ganhar por via do IVA: “Devolve só um bocadinho”. Ou seja, o Governo devia ser o primeiro a pagar uma windfall tax – e é isso que Costa, no fundo, procura anunciar.
3 – A estreia de António Costa Silva
O ministro da Economia e do Mar interveio ao segundo dia, como se estivesse a dar uma aula. Falando de improviso, a mão esquerda no bolso, durante grande parte do tempo, em postura de professor na sala de aula, só lhe faltou passear pelo hemiciclo à medida que dissertava. Num discurso cheio de conteúdo, com as suas já conhecidas ideias para o País, onde tudo é “decisivo” ou “vital”, repetiu dissertações públicas anteriores, pouco se podendo estranhar que o fazia sem ler um papel: é que ele já sabe aquela cartilha de cor. Mas a grande novidade concreta deu-a em resposta a uma arenga de Mariana Mortágua sobre os lucros “imorais” das empresas ligadas à energia, que assim ganham com a guerra. Costa Silva descaiu-se, dando a sensação – até pelo discurso seguinte, proferido por Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática – que a novidade não estaria no guião do Governo. Não neste momento e, decerto, não pela boca deste ministro. A windfal ltax significa, à letra, a taxa sobre o que o vento traz. É um conceito económico e fiscal que, traduzindo para a correspondente expressão idiomática portuguesa, significa taxar os lucros que “caem do céu”. Não é a primeira vez que Costa Silva fala disto: já o tinha sugerido num discurso na Ordem dos Economistas.
4 – O guião da discussão ideológica
Durante os primeiros anos de democracia, a discussão ideológica, no Parlamento, centrava-se entre os partidos do arco do governo, subscritores de uma democracia parlamentar e pluralista ao estilo ocidental, e os comunistas, partidários de uma democracia (que hoje se chamaria iliberal…) dirigida por uma vanguarda do proletariado. Ou seja, a discussão era entre a democracia burguesa e a democracia popular. Depois, durante décadas, a discussão ideológica desapareceu do Parlamento. Os debates passaram a ser “clubísticos” e, com o debate clubístico, o que se preza é a “troca de galhardetes”. Talvez seja apenas episódico, mas parece estar a assistir-se, neste Parlamento, a um regresso da ideologia. Não entre o PS e o PSD, não entre os partidos moderados e os radicais, mas entre o estado social e o liberalismo Foi António Costa quem lançou o mote, interpelando, na alocução inicial, um único deputado – Cotrim de Figueiredo -, e foi Cotrim quem mordeu o isco. Essa dicotomia entre Estado social e Estado liberal perpassou todo o debate e acabou por condicioná-lo.
5 – Chega, o partido do sistema
A figura da moção de rejeição do programa do Governo (como as moções de censura), quando se tem a certeza absoluta de que, não só será chumbada, como apenas terá os votos favoráveis da força política proponente, é um artifício parlamentar, diversas vezes utilizado pelos partidos do sistema. Faz parte da retórica parlamentar, para vincar uma posição política, condicionar os outros partidos da oposição, marcar terreno e ter tempo de tribuna, para passar uma mensagem. Este tipo de lógica parlamentar, moções de rejeição, de censura, de confiança, tem sido criticado pelos populistas, como uma “fantochada”. O populismo procura explorar a má imagem que as discussões consideradas estéreis fazem passar para o público menos familiarizado com o ritual democrático: “Os deputados perdem tempo só a discutir”, “eles só falam e dizem mal uns dos outros”, “eles perdem tempo com babláblá”. Ora, o Chega acaba de usar o mesmíssimo estratagema político-parlamentar que foi usado n vezes pelos partidos do sistema. A sua moção de rejeição é uma cópia fiel das estratégias seguidas pelos partidos sistémicos desde que o Parlamento democrático é Parlamento democrático. Com a sua moção, o Chega pensou da mesma maneira que os partidos que critica sempre pensaram, com a mesma lógica, os mesmos pressupostos e os mesmos objetivos. Bem vindo ao “sistema”.
6 – O incidente
Guardamos o melhor, isto é, o pior, para o fim. Ao segundo debate, Augusto Santos Silva repreendeu André Ventura. Não o fez em tom irritado, como Ferro Rodrigues. Mas em tom sereno, amigável e quase irónico, como um professor que corrige um aluno. Exerceu pedagogia, não perante Ventura, que sabia bem o que estava a fazer, mas para os portugueses: “Lembro ao senhor deputado que a figura de culpa coletiva não existe, em Portugal”. Fê-lo, interrompendo Ventura, quando este, por causa de um crime cometido por um cidadão, por acaso, de etnia cigana, acusava todos os ciganos. Com efeito, nunca o ouvimos, a propósito de um crime de calibre idêntico – o assassínio de um polícia – perpetrado por um grupo de fuzileiros, a culpar as Forças Armadas, nem, ao menos, o corpo de Fuzileiros… Com as costas quentes dos aplausos que antes não tinha, Ventura entusiasmou-se e levou tudo a eito, incluindo pessoas ausentes daquele filme. (Mas não, Francisca Van Dunen não recebe aquela reforma por ter sido ministra, mas pela longa carreira judicial…) E nem sequer faltou o tique indiciador de pulsões demagógico-totalitárias, quando o deputado opõe um povo supostamente virtuoso a elites perversas. Temos a certeza de que, se ele conhecesse um pouco da História, saberia que, com este argumento, começaram todas as desgraças da humanidade, no século XX, dos progroms nazis ao comunismo estalinista, da revolução cultural de Mao Tsé Tung ao fascismo italiano. (Por falar nisso, é bem curioso observar a linguagem corporal de Ventura, quando faz aquelas pausas para acenar afirmativamente com a cabeça, olhando em redor e aprovando-se a si próprio, ou para a abanar, quando acaba de reprovar os outros. Que grande orador do século XX inspira o seu estilo tribunício?… Não é difícil descobrir.)
Isto promete: O presidente da AR foi aplaudido, longo tempo, por todas as bancadas – exceto a do Chega – e, no final, André Ventura lavrou um protesto formal, queixando-se de ter sido vítima de censura. À espera da reação, Santos Silva leu o artigo do regimento que autoriza o presidente a retirar a palavra ao deputado que ostensivamente “se desvie do assunto do debate ou utilize um discurso injurioso”. Ventura disse que continuará a falar dos ciganos quando tiver de falar deles. E Santos Silva prometeu que continuará a admoestá-lo quando entender que o deve fazer. A linha é fina e caminhar por ela é temerário. O que é ser injuroso? E qual o deputado que não se desvia do tema em debate?… E que outros deputados serão admoestados?… Ou haverá tratamento especial para um? Isso não lhe dará mais importância?
Habemos, pois, Governo. Agora, é governar.