“O primeiro ‘garante’ de que não pisarei o risco sou eu próprio” Com esta frase, em resposta a uma pergunta sobre o que fará António Costa com a sua maioria absoluta, e se o Presidente da República será um “garante” de que não pisará o risco, o reforçado primeiro-ministro sedimenta as suas juras de uma “maioria de diálogo”. Uma maioria “fofinha”, portanto. Com o espírito magnânimo de um César coroado de louros, o líder do PS tinha acabado de provar, esta noite, que, mesmo num quadro de fragmentação partidária no Parlamento, o que os politólogos consideravam impossível podia acontecer: a hipótese de uma maioria absoluta. Mas também provou que mesmo um Governo desgastado pode almejar obtê-la. Contou, para isso, com o suplemento extra-socialista do voto útil de um eleitorado de esquerda muito zangado com o PCP e com o Bloco de Esquerda e, ao conseguir arrebatar o primeiro lugar em distritos tradicionalmente alaranjados, com os “aliados objetivos” do Chega, que cristalizaram, à direita, um eleitorado que vota quase “religiosamente”, sem estados de alma sobre a utilidade ou o desperdício do seu voto.
A este propósito, Rui Rio desperdiçou, durante a campanha, a oportunidade de encostar os eleitores do centro e do centro direita à parede: ao tergiversar sobre alianças futuras, enunciando o entendimento quase certo com a IL, a ambiguidade relativamente ao Chega – e até a bonomia do apelo ao voto no CDS, caso ele não viesse para o PSD, desmoblizou um voto que nem sondagens à pele, “remobilizaram”.
A segunda maioria absoluta do PS é a mais improvável maioria da nossa democracia e surge em contra-corrente com a tendência fragmentadora e adventícia de populismos que se implanta noutras paragens e noutros eleitorados. Nunca saberemos qual foi o efeito da pandemia nesta escolha dos portugueses e é impossível avaliar se ela se deve a uma declaração de confiança e estímulo ao Governo ou a um qualquer “síndrome de Estocolmo” do eleitorado. Mas este é o melhor momento de Costa, em toda a sua carreira política. Ele surge no contexto mais inesperado. A noite eleitoral de 30 de janeiro de 2022 fica como um caso de estudo para os cientistas políticos do futuro.
Por outro lado, Marcelo Rebelo de Sousa obtém, também, uma grande vitória, senão do ponto de vista do seu “coração partidário”, pelo menos do ponto de vista da sua magistratura presidencial. Mais uma vez, e é a terceira, uma dissolução parlamentar muda radicalmente o jogo político, confere estabilidade a País e dá razão ao Presidente. Na sua jogada mais arriscada, o murro na mesa de Marcelo acaba com o cenário de crise política. Esse era o seu primeiro e mais importante objetivo, independentemente de quem fosse o vencedor – Costa ou Rio.
O discurso de derrota de Rio foi desastroso, revelando um político completamente desfasado da noite, do momento e do que lhe tinha acontecido. Sem qualquer sentido da realidade, falou como se ainda fosse a tempo de apelar ao voto, disse que se demitiria ou então não. Mostrou-se ufano das contas equilibradas da campanha (a sério que era esse o objetivo para dia 30?!). E acabou a balbuciar umas frases em alemão, numa demonstração de autismo funcional que o torna totalmente desadequado para quaisquer situações de pressão política. A tarefa era difícil: Rui Rio,que esperava beneficiar do efeito Moedas (só isso era curto…), concorria contra partidos emergentes, limpos de qualquer currículo de associação ao sistema, e nunca desencorajou o voto neles. Costa, ao contrário, cobrou a fatura do chumbo do Orçamento a partidos desgastados, em decadência, um, e eleitoralmente volátil, o outro.
Duas notas finais: O cenário de maioria absoluta, ou de eco-geringonça e de um país pintado a cor-de-rosa foi-se avolumando, ao longo da noite, tornando ainda mais absurda a exagerada euforia de André Ventura: sim, o Chega é a terceira força política. Mas a terceira força política, no nosso parlamento, costumava estar na casa dos dois dígitos (os tais 10, 12 ou 15% que Ventura já se esqueceu de que tinha pedido…). Ora, a percentagem de mais de 70% de votos concentrados no PS e no PSD bem como o aumento do fosso para o 3.º classificado, significam uma retumbante vitória do mesmo “sistema” que o Chega diz combater.