Em 2009, no XVI Congresso do PS, o então presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, chamou “parasita” ao Bloco de Esquerda. O discurso foi um dos mais violentos da História, proferido por um socialista e tendo como alvo outro partido à sua esquerda. Primeiro do que ninguém, Costa percebera que o Bloco, vivendo do desgaste do PS e do Governo de José Sócrates, tinha como expectativa ir substituindo, paulatinamente, os socialistas, nas intenções de voto, penetrando num eleitorado de esquerda, urbano, de quadros médios, que não votavam no PCP. O Bloco, segundo esta tese, teria nascido para jogar uma partida de pacman para “comer” o PS no intrincado labirinto da esquerda portuguesa, capturada pelo socratismo dos negócios.
Dez anos depois, com o rompimento da geringonça à vista, António Costa dizia, em entrevista ao Expresso, antes das legislativas de 2019, que via o PCP “como um partido de massas” e o BE como um partido “de massmedia”. De novo, o ataque ao principal rival à esquerda, agora vindo de um primeiro-ministro que antevia uma futura associação ao PCP, como suficiente para fazer passar orçamentos.
Entrementes, o Bloco de Esquerda navegava com terra à vista, sempre condicionado pela sua “amarração” aos destinos do PS: de cada vez que o Bloco votava moções de censura (Francisco Louçã, depois de debates parlamentares violentos com José Sócrates) ou pagava os custos eleitorais da coligação negativa que chumbou o PEC IV, o Bloco sofria. Mas quando, pelo contrário, se juntava ao PS, parecia submergido no abraço de urso dos socialistas. O Bloco, que nasce de fações da esquerda antes inconciliáveis – trotzquistas, leninistas, católicos progressistas e outros – mergulhava, ciclicamente, em crises existenciais: o que fazer face ao PS? Pelo meio, a aproximação instrumental de António Costa – que começou, recorde-se, num célebre debate televisivo com Catarina Martins antes das legislativas de 2015… – integrava o partido fundado por Louçã no arco da governação, fazendo com que o Bloco deixasse de ser o “partido Peter Pan” que sempre fora, que não saia da vocação de protesto e parecia ter medo de crescer para o estatuto de partido de governo. Assim, de um momento para o outro, o Bloco viu-se como hipótese para ocupar pastas ministeriais. E esse sabor revelou-se irresistível. Não por acaso, Francisco Louçã acaba de promover Mariana Mortágua à condição de ministra das Finanças. O discurso do antigo líder, proferido este fim-de-semana, na Convenção do BE, em Matosinhos, é mais do que um wishfull thinking: é todo um programa.
O BE deixou de ser o partido “Peter Pan”, que não queria crescer ao ponto de ir para o Governo. Mariana Mortágua foi, por isso, “promovida” por Louçã a “ministra das Finanças”…
Perante as suas próprias contradições, com um resultado nas Presidenciais (Marisa Matias) que foi pouco mais do que envergonhante, o Bloco fez do PS o principal tema da discussão, na Convenção. A direção bloquista, a várias vozes, dedicou-se à auto-justificação sobre o rompimento com a geringonça e o voto contra o Orçamento. “Sem estados de alma”, segundo Catarina Martins, o Bloco não rejeita uma reaproximação, mas, sem papel passado após as legislativas de 2019, como era seu desejo, o Bloco comportou-se, nesta convenção, como a noiva abandonada no altar da igreja, que desabafa, agora, com as amigas, sobre a perfídia do noivo traidor. E esses sapatos são colocados nos pés de António Costa, que preferiu a “outra”, ou seja, o PCP, partido que não disputa o eleitorado ao PS e não se comporta como – palavras de Costa em 2009… – “um parasita”.
O que esperar, afinal, desta convenção? Que fica dela? Um bloqueio auto-imposto pelo Bloco: os bloquistas estão dispostos a reatar com o PS, e com o Governo, mas não saem da sua trincheira, a mesma que lhes custou um lugar à mesa do Orçamento para 2021: mudança nas leis laborais, melhores serviços públicos (supõe-se ainda mais dinheiro para o SNS) e o fecho da torneira ao Novo Banco, independentemente dos contratos assinados entre o estado e a Lone Star. E daqui não saímos.
Mas, também, outro argumento para estender a mão ao PS. E que está implícito no ataque de Catarina Maritins ao PSD, no seu discurso de encerramento. Logo no início, Catarina encosta o PSD à extrema-direita, “um fantasma que só vibra quando ouve ‘morte ao socialismo’”. Ora, o Bloco posiciona-se como imprescindível para afirmar a esquerda contra essa ameaça. À atenção de António Costa.
Outro tema forte, no discurso, foi o apelo à mobilização para as autárquicas, tradicionalmente difíceis para o Bloco de Esquerda, que tem mais deputados na AR do que vereadores no País. Acusando o toque, Catarina Martins sabe que terá um exame especialmente exigente – e as bonitas palavras não parecem ter apontado qualquer rasgo, nesse domínio, que continuará, nos próximos tempos… “em atualização”.
As vozes contestatárias existem, no Bloco, e pronunciaram-se – mas timidamente, perante o passeio triunfal encetado, apesar de tudo, por esta direção, durante a Conveção. A contestação parece não ter um rosto, nem uma liderança, nem um aparelho, nem uma organização. Mentor e ainda com capacidade para dar a tática, Francisco Louçã, fortalecido pela autoridade pessoal de conselheiro de Estado – a prova de que o regime reconhece a importância e a influência do projeto bloquista… – dá o mote, com a “promoção” de Mortágua a ministra: o Bloco só pode querer o Governo e esse é o preço a pagar por um PS que, de repente, se veja apertado para aprovar orçamentos ou dependente do PSD “de extrema-direita”. Mas enquanto o Bloco estiver a dar sinais de pagar, nas sondagens, o preço de contestar a pax socialista, o PCP não faltará a António Costa.
Mariana Mortágua será a próxima grande estrela eleitoral do Bloco de Esquerda
Apesar disso, e com o protagonissmo ganho no bom desempenho na comissão de inquérito ao Novo Banco, o Bloco tem um novo trunfo de peso para lançar em futuras pugnas eleitorais, como bem percebeu Louçã: Mariana Mortágua, que será a próxima grande estrela eleitoral dos bloquistas. Ora, se a política e os votos vivem de figuras, essa não é uma pequena coisa.