Na polémica sobre os apoios sociais, é fundamental distinguir com clareza a substância da forma. Ou, se preferirem, os méritos e os deméritos dos diplomas aprovados, do processo que levou à sua aprovação.
Pelo meu lado, não discuto o essencial da justeza e da justiça das leis aprovadas. Não tenho dúvidas de que os montantes em causa são mais bem aplicados no apoio dos segmentos da população que mais sofrem com a crise pandémica do que no buraco sem fundo que é a TAP, só para dar o exemplo mais chocante.
A questão é obviamente a forma como estas leis foram aprovadas, como se sabe, através de uma coligação negativa que juntou partidos de esquerda e de direita contra o PS. Não que as coligações negativas sejam necessariamente um problema em si mesmas. Basta lembrar que a Geringonça é a forma suprema de coligação negativa e, que eu tenha reparado, o PS nunca se queixou do arranjo.
O problema só verdadeiramente eclode quando as ditas coligações negativas chocam de frente com o princípio da separação de poderes. É o caso. Julgo que nem o Presidente da República verdadeiramente tem dúvidas sobre quem é responsável, no nosso regime político, pela gestão e pela execução do Orçamento do Estado: à Assembleia da República compete aprovar o Orçamento, ao governo compete executá-lo. Aliás, repare-se no absurdo de imaginar o contrário: se um governo vê o seu Orçamento do Estado chumbado na Assembleia da República, a sua queda é inevitável na medida em que deixa de ter condições mínimas para governar. Convenhamos que é, de facto, precisa muita criatividade para imaginar que, ao contrário, um qualquer executivo pudesse aceitar governar com base num orçamento que não é o seu.
Nem é, portanto, preciso entrar na discussão técnica sobre a constitucionalidade, para a qual sou manifestamente incompetente (embora registe a convergência de opiniões entre os mais reputados constitucionalistas do País), para perceber de que lado está a razão neste caso. Aceitar a doutrina bizarra e retorcida do Presidente da República seria criar um precedente gravíssimo a partir do qual, em relação a medidas justas (como estas) ou absolutamente iníquas, passaríamos a ter um País governado diretamente pela Assembleia da República, pelos humores da oposição e pelo juízo subjetivo do Presidente da República. Tal equivaleria a decretar uma sentença de morte para os executivos minoritários e, mais grave, a aceitar um total atropelo do princípio liberal da separação de poderes.
Lamento dizê-lo, mas é minha convicção que o Presidente da República não promulgou os diplomas a pensar apenas (ou sobretudo) nos mais frágeis e que muito menos o terá feito a pensar na Constituição. Ironia das ironias, quando daqui a largos meses o Tribunal Constitucional decidir a favor do Governo, teremos António Costa erigido em defensor primeiro de uma Constituição sacrificada pelos cálculos políticos de um Presidente em incessante busca de popularidade. Num tempo de exceção como aquele em que vivemos, em que se tornaram rotineiros os sucessivos decretos de estado de emergência, convenhamos que a coisa não é de molde a deixar-nos sossegados.
(Opinião publicada na VISÃO 1466 de 8 de abril)