Temos assistido nos últimos dias à explosão de uma variedade inusitada de factos e de opiniões sobre o que se passou no lar de Reguengos. Os pedidos de demissão da ministra do trabalho, após uma entrevista, e do presidente da ARS do Alentejo, após ter exigido aos médicos que prestassem cuidados aos utentes do lar, são apenas dois episódios de um conjunto extraordinário de relatórios, depoimentos e controvérsias, cujos protagonistas vão desde as Ordens, dos médicos e dos advogados, à Procuradoria – Geral da República, Inspeção – Geral dos Serviços de Saúde, Ministérios da Saúde e do Trabalho, Autoridade Nacional de Proteção Civil, Coordenador Regional para a Pandemia e Secretário de Estado da Defesa, ARS do Alentejo, Presidente da Câmara da localidade (por inerência presidente da entidade proprietária do lar), profissionais, utentes, famílias e residentes, a par, claro, dos partidos políticos que logo se posicionaram para explorar a oportunidade.
Os lares, todos sabemos já, são os sítios mais perigosos para se apanhar COVID. Aí reside uma população muito idosa, com várias doenças associadas e muito suscetível a qualquer infeção. São o local aonde mais se morre por COVID, não só em Portugal como praticamente em todo o mundo. Os surtos nestes estabelecimentos residenciais são constantes e, como cerca de 90 % dos óbitos, entre nós, ocorre entre os infetados acima dos 70 anos, os desenlaces fatais são, infelizmente, frequentes.
Também sabemos que os lares, na sua grande maioria, apresentam condições austeras de acolhimento e de prestação de serviços aos seus residentes e não é incomum haver relatos de estruturas inadequadas, ocupação excessiva e falta de cuidados apropriados. Nas urgências dos hospitais, a chegada diária de residentes em lares, que aí entram desnutridos, desidratados, com escaras e infeções urinárias é, infelizmente, uma realidade que quem lá trabalha bem conhece. O Estado tem fechado os olhos a estas situações e as instituições proprietárias, muitas sem fins lucrativos, reclamam mais apoios e outro financiamento, justificando com a escassez de recursos as falhas nas respostas.
O lar de Reguengos não é uma exceção a esta trágica realidade, embora possam ter aí ocorrido, nesta pandemia, situações ainda mais censuráveis de falta de recursos ou de incumprimento de procedimentos básicos. Mas é muito estranho que tenha sido o único lar que concitou tantas atenções, quando foram vários, ao longo destes meses, os surtos com dezenas de mortos, transferência de idosos e nalguns casos de encerramentos. E não vimos, noutras circunstâncias, o envolvimento direto da OM em processos de averiguações.
Mas neste caso de Reguengos houve um facto que desencadeou uma feroz reação da OM e dos seus sindicatos, contra as autoridades e contra a direção do lar. Após a ordem da autoridade regional de saúde para que os médicos do ACES, integrados em ULS, cumprissem uma escala de presença física no lar, quando os utentes mais necessitavam, as estruturas representativas dos médicos aconselharam os seus filiados a não cumprirem essa determinação, utilizando uma série variada e surpreendente de argumentos: férias já marcadas, cansaço, local de trabalho fora do concelho e também falta de condições do lar.
Se não fosse a ajuda prestimosa de um contingente de médicos e de enfermeiros militares, trazidos pela mão da Autoridade Nacional de Proteção Civil e que prestaram um apoio excecional, o balanço final deste caso poderia ter sido bem pior.
Pois bem, na sequência desse episódio com os médicos do SNS e em que o presidente da ARS se viu obrigado a determinar, nominativamente, quem era escalado, a resposta da OM não se
fez esperar. Do inquérito realizado, cujos contornos e legitimidade são questionáveis, parece ter resultado um rol de acusações sobre desorganização, negligência e abandono dos utentes do lar, que estão agora sob escrutínio da Procuradoria – Geral da República e da IGAS (Inspeção – Geral das Atividade em Saúde). Ao mesmo tempo, outros protagonistas, com outras responsabilidades, produziram também os seus relatórios, pelos vistos pouco coincidentes com a versão da OM. Estranha-se neste episódio que, em estado de necessidade, quem parece ter-se disponibilizado a intervir sem reservas ou limites foram os profissionais de saúde militares, pois os que tinham esse dever original e básico se refugiaram em manobras de diversão para negar, afinal, a sua intervenção. A ser verdade, profundamente lamentável!
Os lares não são instituições de saúde e obedecem a um enquadramento de natureza residencial e sob a tutela da Segurança Social, tendo em conta que se destinam a pessoas idosas que vivem, muitas delas, com baixas reformas, e necessitam de apoio social e de proteção para viver. Mas os lares albergam, na sua grande maioria, um vasto número de doentes, em fase aguda, em convalescença ou em regime muito semelhante às instituições de cuidados continuados. Este divórcio entre a esfera social e a esfera da saúde é gerador de frequentes equívocos e mal- entendidos. Se fossem instituições de saúde teriam que ter estruturas e recursos técnicos muito mais complexos e sofisticados e os preços a pagar pelos utentes e pela Segurança Social teriam que ser muito mais elevados. É aliás este o argumentário utilizado pelos dirigentes das IPSS e das Misericórdias e com o qual, em parte, concordamos.
O apoio e proteção social dos mais velhos é um jogo de equilíbrios, em que as questões financeiras desempenham papel decisivo. Custos muito elevados em estruturas tecnicamente similares a centros de reabilitação ou de manutenção da saúde, tornam-se dificilmente comportáveis pelo erário público e pelas famílias e, inviáveis para as entidades que se posicionam no setor. É neste caldo de cultura que assistimos depois à luta por uma vaga num lar, e em que entram doações, quase forçadas, a título de joia. A tudo isto vamos fechando os olhos, quando não achamos mesmo natural.
O problema do envelhecimento, das doenças crónicas que lhe estão associadas e da vida de um contingente cada vez maior de cidadãos altamente dependentes e sem disponibilidade de ajuda familiar, coloca ao Estado novos desafios que esta pandemia apenas veio evidenciar. Os lares, tal como hoje os conhecemos, vão ter que evoluir e incorporar a componente da saúde. A sua filosofia de gestão vai ter que ser mais profissional, a integração com o SNS vais ser uma nova realidade e o Estado vai ter que se adaptar a estes desafios, quer em matéria de organização, quer quanto ao modelo de avaliação e de financiamento. Será um caminho duro e cheio de alçapões e incompreensões. Recriar a ideia de um núcleo familiar multigeracional parece impossível, pelo que novas formas menos institucionalizadas de ajuda devem também ser desenvolvidas. O Governo tem aqui uma boa oportunidade para pôr em debate público novas soluções, na certeza de que o respeito pela dignidade e pela qualidade de vida dos nossos reformados e idosos deve ser uma missão primordial do Estado.