1 – Não me custa aceitar, em tese, que as sociedades possam revisitar os seus símbolos e os exemplos que decidem homenagear. É certo que entendo que não o devem fazer sob o calor dos acontecimentos, com base em exaltações puritanas e sobretudo com base em pressupostos ignorantes. E parece-me óbvio que os exercícios de julgamento de acontecimentos passados à luz de critérios de avaliação contemporâneos têm os seus limites. Mas – reitero – o debate não deve ser liminarmente recusado à partida.
Isto dito, estou convencido de que esses exercícios, em democracia, têm de respeitar regras e processos. Não é suposto que aconteçam, sub-repticiamente pela calada da noite ou em autos de fé populares. Não posso aceitar que algumas camadas da população se autonomeiem os novos e derradeiros intérpretes da História sem que nós saibamos quem são ou quem representam. Não posso aceitar que se queiram furtar a um debate livre e informado de ideias e que queiram impor à sociedade a sua particular conceção da História.
Este tipo de processos, assim conduzidos, são apenas uma manifestação boçal de intolerância, por vezes tão ou mais chocante do que a que supostamente representam os símbolos que querem abater.
Ora, nada nos obriga a ficar reféns dos mais violentos ou dos mais extremistas. Se vamos fazer esse debate, que o façamos de forma civilizada, informada, tolerante e democrática. Com regras e através dos canais próprios. Doutra forma, a única coisa que conseguiremos é prestar um péssimo serviço a uma causa importante.
2 – Sou dos que acreditam que Portugal tem um problema com o racismo. Historicamente, diferente do problema dos EUA. Mas um problema sério. Reconhecendo que há poucos dados sobre o tema (não recolhemos dados étnicos nos nossos censos) e que a minha convicção é portanto empírica, julgo que qualquer pessoa de boa-fé pode constatar com facilidade que certas minorias étnicas estão absolutamente sub-representadas na política, na academia, na comunicação social, nas empresas. E que isso é o sintoma evidente da existência do problema.
Ora, acredito que não existe nenhuma razão substantiva para que a luta contra o racismo não possa ser uma luta agregadora de vontades na sociedade portuguesa. Não há nenhuma razão ideológica de fundo que precise de dividir a esquerda e a direita neste domínio. Mas não é tudo o que sei. Sei também que a apropriação de determinadas causas por parte de segmentos mais radicais da sociedade afasta os segmentos mais moderados. Quem quer participar numa manifestação contra o racismo não quer necessariamente gritar palavras de ordem contra o capitalismo, muito menos incitar à violência contra a polícia.
E assim sendo, repito, a radicalização é um mau serviço prestado à luta contra o racismo na medida em que aliena significativas franjas da população que, doutra forma, convergiriam em torno da causa.
Mas, isto dito, reconheço também, sem problemas, que parte dessa apropriação acontece por manifesta falta de comparência da direita. É que não basta denunciar os excessos dos radicais que, à esquerda, desvirtuam a luta contra o racismo. É preciso, de uma vez por todas, incorporar essa mesma luta no topo das preocupações da direita liberal. Até para ter a legitimidade plena para combater estes excessos.
O racismo é um problema sério demais para ser deixado à esquerda radical.