Para mim, a partir de hoje, o coronavírus passou a ter um rosto e não é mais um número de mortes anunciadas diariamente. Ironia do destino, Maria de Sousa, imunologista que viu muito para além do sistema imune, deixou-nos dia 14 de abril, vítima de Covid-19. Tinha 81 anos.
Estamos a falar de alguém insubstituível, que está para nós como os pais e avós estão para os filhos e netos. A propósito desta pandemia, foi ela que disse, há menos de duas semanas, antes de ser internada, que “não se tratava de uma guerra, pois um vírus que não é inteligente não pode ser o inimigo”. O inimigo, dizia ela, “somos nós que transportamos o vírus para a próxima pessoa a quem dermos um abraço”. Sem mais. Com tanto de cruel como de verdade. A Maria era assim, era aquela pessoa que sempre nos dizia na cara exatamente o que precisávamos de ouvir e nem sempre aquilo que gostaríamos. E por isso lhe ficamos agradecidos e reconhecidos.
Quando fiz 40 anos e já andava nesta coisa da ciência há algum tempo, ela escreveu-me sobre o perigo que alguém corre nessa idade depois de alcançar algum sucesso na ciência. E que perigo é esse? “Pensar que o que já está feito chega. Esquecer que terá pelo menos outros tantos 40 anos para viver e cair na tentação da satisfação daquilo que foi feito até hoje e do ser sensível à admiração e à dedicação que os outros lhe transmitem: A EVITAR!”, escreveu ela. O resto da mensagem guardo só para mim, mas escusado será dizer que, no meio de tantas outras que recebi naquele dia (igualmente importantes!), esta é a única de que me lembro e que recorrentemente me vem ao pensamento.
Ninguém ficava indiferente à Maria.
A Maria também sabia como ninguém a importância dos jovens para a nossa sociedade. A forma que ela encontrou de os valorizar foi criar o GABBA, um programa pioneiro de Doutoramento em Biologia básica e aplicada, que formou uma geração inteira de cientistas à sua imagem. Muitos deles são hoje líderes mundiais em várias áreas do conhecimento. Este é, sem sombra de dúvida, o seu maior legado.
Num momento em que se começam a pesar os números entre mortos por Covid-19 e o impacto que as medidas que foram tomadas irão ter na economia, nunca é de mais trazer para a discussão aqueles que nos deixam. Os mesmos que um dia fizeram tudo por nós. Necessariamente, o mundo será mesmo muito diferente depois de tudo isto. Não por aquilo que deixámos de ganhar, mas por aqueles que perdemos e ninguém poderá substituir.