Por Sofia Formosinho, publicitária
A minha mãe, agora com 84 anos, toda a vida foi absolutamente compulsiva com a higiene. Tudo em geral, lhe parecia um “potencial” nojinho! A lixívia, o sabão azul e branco, o álcool às litradas, ou em várias garrafinhas espalhadas por todas as carteiras, os kleenex (os mais seguros, porque não se toca em nada), viviam em locais estratégicos da casa. Acho que deve ter sido das primeira pessoas a descobrir as mini-toalhitas de álcool (compravam-se em Badajoz, com os caramelos e as canetas de feltro de 36 cores).
Não entrava nem saía de lado nenhum, sem se borrifar e nos borrifar a nós. Eu e a minha irmã morríamos de vergonha. Não havia ninguém à nossa volta a fazer isto. Era ridículo. Fomos crescendo e claro que a conversa pipocou. A razão era esta: a minha mãe é espanhola, viveu o pós guerra, foi uma das famílias que veio refugiada para Portugal. Viveu também o pico da tuberculose que levou uma irmã e muitos amigos para diferentes sanatórios – em quarentena sem pais ao lado, sem família, nem amigos. Iam e vinham sozinhos, os que vinham!
Diz muitas vezes: foi um trauma. E nós: “Sim, é certo que é um trauma, mas já passou!”
A outra razão desta fobia é que foi toda a vida educadora de infância. Da escola Mitsa (a primeira de educadoras de infância, antes da Maria Ulrich), uma escola muito vanguardista e criativa. Acrianças brincavam com terra, trepavam árvores, faziam casinhas para minhocas, corriam e saltavam. Mas depois disto, levantavam as camisolas lavavam-se até ao cotovelos. Lavavam a cara e faziam fila para a minha mãe as borrifar de álcool e poderem voltar à sala… deixando os sapatos à porta. Com esta rotina, a minha mãe afirma que, nas diferentes salas dela, nunca houve um caso de sarampo. Uma doença que assustava todas as famílias.
Mas nem eu, nem a minha irmã, achámos que isso poderia ser razão para este nível de borrifadela quase histérico. “Mãe, ok, mas estamos na Europa, o sarampo já tem vacina e por amor de Deus… não encharque os meus filhos de álcool! A resposta era sempre a mesma: “Eres muy cochina, Lávate las manos y passa alcohol, y si no lo haces, por favor hazlo con tus hijos”. Nada a fazer.
Os meus filhos passaram também por isto, claro. Cada vez que os ia buscar à escola, desinfetavam as mãos e quando chegavam a casa, lá estavam no banquinho de mangas arregaçadas até aos cotovelos a fazer espuma. No fim, levavam a borrifadela da avô! E mais Johnson cor de rosa, passado a pente até o cabelo ficar molhado. Este era o cheiro em casa da minha mãe, fresco assético e com uns laivos de Johnson cor de rosa.
À volta de tudo isto, todas as pessoas que estavam debaixo do radar da minha mãe tinham este comportamento. O mínimo, era lavar as mãos e borrifar álcool. Só assim alguma coisa começaria! O álcool para nós era mesmo álcool, e só tardiamente percebemos que havia “outros álcools”. Da mesma maneira, que limas eram para as unhas, e quando um dia me pediram para levar limas do supermercado, nem pensei nas caipiroscas e levei, obviamente limas das unhas! Humilhante…
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Escusado será dizer que lavávamos as mãos, claro, mas recusávamos o álcool sobre todas as suas formas, quase aos gritos, a alegar liberdade e respeito. E claro a minha mãe, começou a aceitar que tinha de viver com pessoas que amava mas, que não cumpriam os básicos, na régua de ser “limpo”. Houve muitas histórias familiares, na rua, no supermercado e em restaurantes. Lembro-me em particular de uma viagem de comboio (a minha mãe não tinha carta ) de Lisboa a Oliveirinha – cerca de 8h –, em que, a cada vez que tocávamos no vidro ou na cadeira lá ia a borrifadela! Não me lembro de, em frente à minha mãe, alguma vez ter bafejado para um vidro, para escrever um S de Sofia ou um coração. Só de imaginar a carga de álcool, nunca o fiz debaixo do seu radar.
E chegámos a hoje.
Na quinta-feira comprei duas garrafas de álcool a 5,98€ cada (ia morrendo), passei para um frasquinho, que anda comigo na carteira. Desde quinta-feira que, a cada lavadela de mãos, dou a mim própria a borrifadela. Tenho dois filhos, um que aderiu à borrifadela (até está com medo que as duas garrafas não cheguem), e outro, bem mais reacionário, que foi para casa do pai de comboio. Ainda tentei impingir-lhe, debaixo de súplicas, o frasquinho de álcool, mas claro, nem pensar. “Obrigada mãe, mas álcool nem pensar, tenha noção!”.
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