Ao longo dos últimos anos, a problemática relacionada com a base das Lajes tem estado na ordem do dia. Levantamos hoje algumas questões que entendemos pertinentes, assim como tecemos alguns considerandos sobre o atual estado das Relações Transatlânticas, designadamente no que se refere aos Estados Unidos da América e à sua presente administração.
Não vamos tratar especificamente da importância geopolítica e geoestratégica dos Açores. Concentrar-nos-emos em algumas questões que têm vindo a público acerca das potencialidades relacionadas com a base das Lajes, e, de uma forma geral, com o arquipélago dos Açores.
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Com o objetivo de abordar esta matéria, pedimos a ajuda do académico açoriano, Doutor Luís Manuel Vieira de Andrade, Professor Catedrático em Ciência Política e Relações Internacionais, discípulo de Adriano Moreira, seu orientador na tese de doutoramento que, em 1993, defendeu na Universidade dos Açores, subordinada ao título “Neutralidade colaborante – o caso de Portugal na Segunda Guerra Mundial”. Adriano Moreira integrou todos os júris dos concursos de Vieira de Andrade, inclusivamente o concurso para professor catedrático.
Luís Vieira de Andrade foi representante da Região Autónoma dos Açores na Comissão Bilateral Permanente do Acordo de Cooperação e Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América, entre 1996 e 2000 e entre 2001 e 2004.
Base Aérea das Lajes e a imprevisibilidade do mundo
Podemos afirmar que os Açores têm sido relevantes ao longo dos séculos no que respeita à geopolítica e à geoestratégia. No século XX, foi evidente por parte de algumas potências a vontade de obterem facilidades de natureza militar no arquipélago. Quer o Reino Unido, quer os Estados Unidos da América manifestaram interesse em se estabelecerem nos Açores, os últimos no decurso da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, o primeiro, sobretudo, ao longo do último conflito mundial. Esse interesse manteve-se entre 1945 e 1989, ano que marca simbolicamente o fim da Guerra Fria.
É importante referir, todavia, que o interesse, designadamente dos EUA, pelos Açores voltou a verificar-se depois de 1989, muito embora a Guerra Fria tenha terminado oficialmente após esta data e, em termos geopolíticos, se tenha passado de um mundo bipolar para um mundo unipolar, na medida em que a URSS implodiu, dando lugar, primeiramente, à Comunidade de Estados Independentes e depois à Federação Russa propriamente dita, com as restantes repúblicas soviéticas a obterem a independência. Porém, para Luís Vieira de Andrade, “o mundo a que nós assistimos desde o fim da URSS, em Dezembro de 1991, até hoje, não foi, nem é, tão pacífico e estável como muitos especialistas pensavam inicialmente. Ao que nós assistimos, de facto, é a uma enorme imprevisibilidade, por um lado, e a uma grande conflitualidade, por outro, um pouco por todo o mundo, inclusivamente na supostamente desenvolvida Europa.” E quanto ao nosso Continente, a título de exemplo, o Professor cita o caso paradigmático da ex-Jugoslávia e lembra que “os acontecimentos que tiveram lugar ao longo da última década do século XX, designadamente na Bósnia-Herzegovina, na Sérvia e no Kosovo, já não se viam desde a Segunda Guerra Mundial, durante a qual assistimos às atrocidades cometidas pela Alemanha Nazi, sobretudo quanto às limpezas étnicas e ao extermínio da população judaica e não só. Os ódios com origem em nacionalismos exacerbados, por um lado, e em conflitos de natureza religiosa, por outro, tiveram lugar no território da ex-Jugoslávia, tendo, em alguns casos, perdurado até aos nossos dias.” Por outro lado, prossegue Luís Andrade, “a conflitualidade no Médio Oriente intensificou-se, sobretudo, no que respeita ao Iraque e à Síria, assim como ao Afeganistão e ao Iémen. A formação de um Estado Islâmico, ocupando uma parte significativa do território da Síria e do Iraque, contribuiu para desestabilizar ainda mais a situação que se vivia e que se continua a viver naquela área do mundo. E é relevante referir que, pelo menos parcialmente, a instabilidade a que hoje se assiste naquela região do mundo se deve em larga medida à intervenção militar norte-americana no Iraque, que teve lugar em Março de 2003.”
Como consequência de toda esta instabilidade, Luís Vieira de Andrade opina que “a problemática relacionada com os refugiados, que todos os dias chegam às costas da Europa, designadamente à Grécia e à Itália, se deve a essa intervenção militar dos EUA.” E remata que, “para além da eterna luta entre Xiitas, Sunitas e Curdos, a intervenção militar dos EUA contribuiu para a complexificação do problema e para a génese dessa vaga de refugiados que está, e continuará a estar, a afetar a Europa.”
Precisamos de uma política comum de segurança e defesa na União Europeia?
Face ao exposto, o terrorismo transnacional tem sido uma característica cada vez mais marcante do mundo atual. Reparemos nos atentados que têm vindo a ocorrer um pouco por toda a Europa, desde São Petersburgo a Londres, passando por Paris, Nice e Bruxelas. Este cenário preocupante leva o Professor a defender “a necessidade, inequívoca, da Europa, e mais especificamente da União Europeia, de implementar uma Política Externa e de Segurança Comum e, por sua vez, uma Política Comum de Segurança e Defesa.” Para Andrade, “é absolutamente necessário que a U.E. se dote, o mais rapidamente possível, de uma capacidade autónoma no âmbito da Segurança e da Defesa. Não nos podemos esquecer que a segurança constitui uma condição sine qua non para o desenvolvimento e para a estabilidade política, social e económica.”
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Quis, a propósito, precisar o Professor que “tendo em consideração as recentes declarações do Presidente dos EUA, é evidente que o continente europeu não pode, nem deve continuar a contar com este país, não apenas no âmbito da defesa, mas também em muitos outros. Neste contexto, durante a cimeira do G7, realizada na Sicília, foi evidente que o Presidente norte-americano não mostrou qualquer interesse em analisar, conjuntamente com os seus parceiros europeus, a problemática relacionada com os refugiados que têm vindo a chegar à Europa em números cada vez mais significativos, quando os EUA são um dos principais responsáveis por esta situação. Isto significa, mais uma vez, que a Europa não poderá contar com esta administração dos EUA relativamente a este assunto, assim como em muitas outras matérias.”
Guerra ou diálogo?
Há autores que defendem a tese de que os americanos são de Marte e os europeus são de Vénus. Isto é, os primeiros são muito mais propensos à utilização da componente militar para a resolução de conflitos, o chamado hard power, enquanto os últimos defendem, acima de tudo, o recurso à diplomacia e ao Direito por forma a poderem resolver os conflitos, quer no âmbito europeu quer mundial, dando origem àquilo que se convencionou designar por soft power. Isto significa que a União Europeia defende a solução de conflitos pela via pacífica, o mesmo não sucedendo com os EUA, sobretudo com a atual administração, que defende a via militar.
Para o Professor Luís Andrade, “um aspeto de grande relevância tem a ver com o facto de o Senhor Donald Trump mostrar relutância em reconhecer a importância do artigo 5 da Organização do Tratado do Atlântico Norte, que refere textualmente que um ataque a um membro da NATO é considerado um ataque contra todos. A visão unilateral, arrogante, prepotente e puramente economicista do Presidente dos EUA veio suscitar, no seio da Aliança Atlântica, um enorme mal-estar, o que, como é evidente, tem efeitos extremamente negativos nas relações transatlânticas. Importa lembrar que, durante a sua campanha eleitoral para as presidenciais norte-americanas, o presidente norte-americano por várias vezes referiu que a NATO estava obsoleta, vindo mais tarde desdizer-se e descredibilizar-se ao afirmar que é uma Aliança extremamente importante.” Face a esta postura de Trump, Luís Vieira de Andrade deduz que “não é possível trabalhar com um presidente que agora diz uma coisa e pouco depois afirma exatamente o contrário, porque passa uma imagem de uma enorme falta de sentido de Estado e que não poderá ser levado muito a sério, o que não é nada positivo para as Relações Internacionais, sobretudo, tratando-se de uma potência como os Estados Unidos da América.”
Lajes e a solução Air Center
A problemática relacionada com a base das Lajes, nos seus múltiplos aspetos, ao longo dos últimos tempos tem estado na ordem do dia.
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Está prevista a criação do Centro para a Defesa do Atlântico, que, a ser efetivado, tudo indica, ficará sediado nas Lajes da Terceira, e a criação do designado Air Center, já existente nas Lajes, foi uma excelente solução, não apenas para esta ilha, mas também para os Açores e o país no seu todo. Refere a este propósito Luís Vieira de Andrade que “é importante fazer notar que, dos cerca de vinte e nove Estados presentes na reunião para implementação do Air Center, a Índia e a República Popular da China fizeram-se representar. O Air Center poderá vir a incluir, como refere o jornal Diário dos Açores, na sua edição de 20 de Abril de 2017, “uma base espacial de lançamentos low cost, estações de rastreio de satélites, observatórios no mar profundo e no oceano aberto, um laboratório de medição de gases de estufa, um centro de demonstração de automóveis elétricos, projetos de energias renovável e incubadoras de empresas, numa estrutura de funcionamento em rede com os países participantes.”
Como é evidente, se a criação deste Centro internacional tiver sucesso, estará encontrada uma magnífica iniciativa, não apenas para os Açores, mas de igual modo, para o país, com implicações internacionais, que não são de forma alguma despiciendas. O governo de Portugal, assim como o Regional estão a apostar na diversificação da cooperação com os EUA, abrindo essa cooperação ao mundo. Todavia, acautela o Professor, “da relevância deste projeto, não nos podemos esquecer dos vários problemas que ainda não foram resolvidos, como, por exemplo, o que tem a ver com a descontaminação dos solos circundantes às Lajes e que, defendem alguns, poderão ameaçar aquíferos, não apenas daquela zona mas de outras geografias da ilha. A diminuição significativa da presença norte-americana na base das Lajes, que ocorreu no decurso dos últimos anos, e a consequente redução de trabalhadores portugueses constitui, sem dúvida, um elemento a ter em conta no futuro próximo por parte das autoridades regionais e nacionais.”
Os Estados Unidos da América vão abandonar a base das Lajes?
Há quem defenda a tese de que os Açores e concretamente a base das Lajes perderam toda a sua importância dos pontos de vista geopolítico e geoestratégico. Luís Vieira de Andrade não partilha desta ideia e explica que “após o fim da Guerra Fria e a consequente transição de um mundo bipolar, no plano estratégico-militar, para uma realidade unipolar, muita gente pensou que o mundo seria mais pacífico e mais estável do que aquele que conhecemos ao longo do período que vai de 1945 a 1989-1991. Tal, porém, não aconteceu. Ao que nós assistimos e continuamos a assistir foi a uma enorme instabilidade e a uma imprevisibilidade permanente. E é exatamente este aspeto que explica, em larga medida, que os EUA não vão abandonar os Açores e, em concreto, a base das Lajes. O pior que pode suceder, no âmbito da geopolítica, é criarem-se vazios de poder que, a terem lugar, são de imediato ocupados por alguém. Também, por isso, sou da opinião que os EUA não vão sair das Lajes, independentemente de terem reduzido substancialmente a sua presença naquela base nos Açores. A fim de se tentar colmatar essa diminuição, como foi referido, foi muito importante avançar-se com um centro de investigação multidisciplinar aberto a qualquer país que nele queira participar.” Ainda sobre esta matéria, registámos o desagrado de Luís Andrade para com as recentes declarações do Congressista Devin Nunes, que considera absolutamente inadmissíveis, na medida em que Nunes afirmou, em solo português, que a presença de estrangeiros perto da base das Lajes é inaceitável. Para o Professor açoriano, “estas declarações do Congressista demonstram, por um lado, o desrespeito total pela soberania portuguesa e, por outro, a habitual arrogância e prepotência norte-americanas. Demonstram ainda uma total falta de educação, na medida em que foram proferidas em território português, dizendo, inclusivamente, o que as autoridades portuguesas têm de fazer.”
Um país, seja ele qual for, que perde a sua dignidade, perde tudo
Vieira de Andrade faz questão de apelar à dignidade nacional, afirmando que “um país, seja ele qual for, que perde a sua dignidade, perde tudo.” E é ainda mais preciso quando afirma que “autoridades regionais, conjuntamente com as nacionais, têm de ter a frontalidade de dizer aos norte-americanos o que, de facto, pensam acerca das várias matérias que estão em cima da mesa das negociações. E, como já referido, entre elas, está a descontaminação dos solos, obrigação que é, em primeiro lugar, da responsabilidade das autoridades norte-americanas. Em todo este contexto, é relevante fazer notar que ainda não se tem uma ideia clara das intenções da administração Trump relativamente à base das Lajes. No entanto, as indicações existentes no momento presente não auguram nada de muito positivo. As variadíssimas declarações do presidente dos EUA, em múltiplas áreas, são, de facto, catastróficas. Veja-se, por exemplo, o que fez Trump relativamente ao Acordo de Paris sobre as alterações climáticas. A minha perspetiva é que a região e o país têm de continuar a trabalhar de forma a fazerem sentir às autoridades norte-americanas que ou apresentam propostas concretas e aceitáveis relativamente à sua utilização da base das Lajes ou então o Estado português, conjuntamente com as autoridades regionais, terá, inevitavelmente, de obter soluções alternativas.” – finaliza o ex-representante da Região Autónoma dos Açores, na Comissão Bilateral Permanente do Acordo de Cooperação e Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América.
Em suma, as relações internacionais atravessam um período difícil, com contornos extremamente opacos, o que terá inevitavelmente consequências no que diz respeito à base aérea das Lajes.
Espera-se outro equilíbrio por parte da atual administração norte-americana no sentido de alcançar consensos com Portugal, sendo mais que certo que os Estados Unidos da América continuarão presentes nos Açores ainda durante muito tempo.
Como escreveu Adriano Moreira, é absolutamente necessário que “o poder da palavra (…) possa vencer a palavra de um poder ocidental dissolvente.”