Vem o presente texto a propósito da apresentação no dia 6 deste mês do estudo do Professor Doutor Luís Sousa da Fábrica sobre a autonomia e hierarquia à luz do novo Estatuto do Ministério Público e que terá lugar no auditório D. António Ribeiro, nas instalações de Lisboa da Universidade Católica Portuguesa.
O SMMP tem defendido que os poderes hierárquicos no âmbito do inquérito se devem conter dentro dos limites expressamente previstos no Código de Processual Penal.
A esse propósito, um conhecido comentador televisivo referia que se existe hierarquia é para poder dar ordens e elas serem cumpridas, mostrando estupefação pela problemática levantada.
Ao ouvir o referido comentador julguei que tínhamos regressado à idade média.
Nas sociedades modernas tal conceção primária de hierarquia não tem qualquer acolhimento.
Em qualquer domínio em que haja uma relação hierárquica a mesma é legal e/ou contratualmente conformada, de forma que nem o superior hierárquico pode dar qualquer ordem, nem o subordinado está obrigado a acatar qualquer ordem.
Quem tem funções hierárquicas apenas poderá dar ordens no domínio das suas competências que previamente lhe foram atribuídas, sob pena de cairmos no domínio da tirania e do despotismo.
O Ministério Público é uma magistratura autónoma, do ponto de vista constitucional e estatutário, a quem está adstrito o exercício da ação penal orientado pelo princípio da legalidade.
Não pode a condução de um determinado inquérito criminal, atribuído a um magistrado do Ministério Público ou a uma equipa de magistrados, estar sujeito à intervenção arbitrária de um magistrado colocado na hierarquia numa posição superior, determinando ou condicionando as diligências de investigação, por ex. quem deve ou não ser inquirido, quem deve ou não ser constituído arguido, ou o próprio desfecho do inquérito.
Desde logo, qualquer ordem num inquérito penal orientado pelo princípio da legalidade, cuja direção está atribuída por opção constitucional ao MP, sem depender da intervenção de um juiz, tem de ser tomada no próprio processo e ficar devidamente documentada no mesmo, não podendo ser dada à margem do inquérito num qualquer expediente ou processo privativo do MP, sem o conhecimento e a sindicância dos sujeitos processuais.
A entender-se de outra forma a responsabilidade ficaria diluída pelos diversos graus hierárquicos sendo impossível responsabilizar qualquer magistrado ou equipa de magistrados em concreto pelas suas decisões.
A intervenção da hierarquia na condução tática e técnica da investigação operada pelo magistrado individual na decisão do seu processo, fora das situações previstas na legislação processual penal e no EMP, cria as condições para uma gestão processual instrumental e instrumentalizada, deixando aos superiores hierárquicos a possibilidade de intervenção nos inquéritos sem qualquer limite, fundamento, tempo ou controle.
A negação da capacidade de decisão e competência autónoma aos seus magistrados é potenciadora de mecanismos de controlo político e hierárquico mais ou menos explícitos, mais ou menos encapotados, abrindo as portas a uma interferência do poder político nos processos concretos através da hierarquia e comprometendo seriamente a autonomia do MP constitucionalmente consagrada.
A opção constitucional de qualificar os titulares dos órgãos do Ministério Público como “magistrados” não foi seguramente honorífica ou convencional, antes correspondeu a uma opção assumida de atribuir a estes um espaço de autodeterminação no desenvolvimento das suas tarefas muito semelhante aos juízes.
A razão do MP como estrutura hierarquizada prende-se, isso sim, com a necessidade de garantir uma atuação uniformizada e articulada dos seus órgãos que nada tem a ver com uma interferência direta na condução dos processos.
A autonomia do MP não é um privilegio dos magistrados do MP mas uma garantia para todos os cidadãos de uma justiça independente, isenta e para todos.