
Confesso que não sou fã das grandes cidades, em África. O elevado crescimento populacional, a predominância de população jovem e a fraca oferta de emprego nas zonas rurais levam a que todos os anos milhares de jovens migrem para as cidades.
Esta migração excessiva para as cidades tem provocado um elevado excesso populacional com todos os problemas que isto acarreta. Além disso, a fraca rentabilidade agrícola, devido às condições climatéricas arrasta famílias inteiras, sem trabalho e sem qualquer esperança dele para os subúrbios criando guetos, isolamento e vida sem dignidade. As cidades são todas parecidas umas com as outras, porque os bairros de lata são iguais em todo o lado.
Quando conhecemos Nouakchott, capital da Mauritânia, há quase 20 anos, a cidade pareceu-nos mais pitoresca. O trânsito continua caótico, ao nível do Cairo ou de Dacar. Os semáforos são meros objetos de decoração e as mais elementares regras de trânsito não se cumprem. É o salve-se quem puder. Dá a sensação que os mauritanos tiram a carta nos carrinhos de choque.
Andávamos à procura de alguém que nos trocasse divisas o que não é difícil de encontrar, às vezes até são de mais, parou junto a nós um Mercedes 190, em bom estado, de onde saiu um homem de cerca de quarenta anos, gorducho, bem barbeado, com o bou-bou (vestimenta mauritana) de um branco imaculado e bem engomado. Por baixo tinha uma camisa de colarinhos.
Apresentou-se como coordenador de projetos para o Ordenamento e Higiene.
– E fazem o quê precisamente? Perguntei eu.
– Estamos a trabalhar num projeto de vacinação para as crianças, financiado por Bruxelas.
– Pago pelos contribuintes europeus, retifiquei.
– Mas é muito importante para a saúde das crianças.
– E se começassem por apanhar o lixo?
Ele encolheu os ombros e respondeu: apanhar o lixo, como assim?
– Sim, apanhar o lixo que fazem. Aqui, as pessoas vivem com montes de lixo à porta já para não falar dos animais mortos em estado de decomposição, putrificados. Podiam fazer aterros de lixo ou até queimá-lo. Seria um mal menor. Seria um grande passo para evitar doenças.
– Ainda não temos nenhum projeto para o lixo…
(este homenzinho tira-me do sério)
– Para pegar numa vassoura ou numa pá precisam de um projeto financiado?
– Em novembro, vamos ter uma reunião, aqui em Nouakchott, com uma delegação europeia e podemos apresentar…
(estou-me a passar com este “santo na terra” e nem o deixo acabar a ladainha).
– Companheiro, são vocês que o têm de fazer. A diminuição de doenças não se faz com financiamentos, faz-se com prevenção e boas práticas de higiene.
– Mas temos que olhar para África de forma especial.
(Saltou-me a tampa)
– Não temos nada. Os problemas dos africanos terão de ser resolvidos pelos africanos. Mais de meio-século de dádivas e as condições de vida das populações melhoraram? Não! Tantas ONG, tantas doações e vocês continuam sem se esforçarem minimamente.
O gorducho baixou a cabeça, como se estivesse envergonhado. Levantou-a calmamente e com o olhar fixo no meu relógio de pulso, disse: belo relógio, precisava de um assim, tem algum de “cadeau”?
Noutras circunstâncias explodia e dizia-lhe das boas mas, curiosamente, fui como que possuído por uma tranquilidade celestial. A visão cínica deste coordenador de dádivas, deste idiota ambicioso só mereceu uma resposta: tenho, mas não é para si. Boa tarde.