Estamos em guerra. Bruxelas amanheceu ao som dos gritos e da destruição, das ambulâncias e do caos de um previsto imprevisível. Caíram as cinzas e os destroços, envolvendo-nos no silêncio do medo e no golpe surdo do choque e da insegurança.
Primeiro, fomos todos meter-nos nas nossas casas, aguardámos inquietos revelações atabalhoadas, relatos e números de mortos e feridos, telefonámos uns aos outros até que as redes móveis deixaram de funcionar. Depois veio a reação, armada em coragem. Saímos à rua como quem não tem medo, cheios de medo, a partilhar caras tristes e mensagens coloridas de esperança no chão, acendemos velas, decorámos com flores e cores, abraços, música, a noite a cair… E hoje voltamos a acordar com medo.
Apetece-me chorar. Lá vamos nós ter de explicar outra vez que os refugiados fogem da mesma violência, do mesmo medo que hoje sentimos. Sublinhar que aqueles que hoje reivindicaram os atentados matam gente todos os dias, até sem bombas, devagar e cruelmente, no país de onde vêm os milhares que chegam à procura de paz na nossa terra. Que os muçulmanos que vivem na Europa e no mundo não são responsáveis pelo que aconteceu. Que a questão não está em serem muçulmanos ou cristãos, árabes, negros, brancos, belgas ou franceses, que está na loucura de qualquer assassino. É esta a loucura do ódio, que não podemos deixar entrar nas nossas vidas.
Quando cheguei à Place de la Bourse, na tarde de terça-feira, cruzei-me com dezenas de refugiados que conheço. Felizmente, passam despercebidos, é provável que nem os jornalistas que lá andavam pudessem saber. Felizmente, não têm uma braçadeira amarela no braço que os distinga dos outros, como chegou a ser sugerido por uma das freguesias de Bruxelas. Felizmente, ainda não chegou o dia em que já não podemos andar na rua como iguais, partilhar a cidade e a tristeza que de ela hoje se apoderou, demonstrar-nos solidários como humanos que somos, independentemente da história que torna cada um de nós único. É disso que tenho medo, mais do que do terrorismo, do dia em que entremos em guerra uns com os outros.
O Omar tem três filhos pequenos, está em Bruxelas há seis meses, ainda à espera do direito de asilo para poder recomeçar e, eventualmente, obter autorização e apoio para trazer a família para a paz. Telefonou-me de manhã para saber se eu estava bem, pediu-me para ficar por casa até a cidade respirar fundo e à tarde encontrámo-nos na Bourse, juntos pela mesma causa, enquanto nas redes sociais se espalhava a ignorância e o ódio. Foi assim que decidimos reagir, sabendo que só deste modo poderemos ultrapassar o trauma e pensar à frente, com humanidade e clareza.
Já lá vai quase um mês que o campo de refugiados fechou. O Hall Maximilian vai transformar-se em apartamentos para alguém vender e alguém comprar. É assim que funciona a realidade, mesmo no mundo dos sonhadores. Desde então, só tenho notícias pelo Facebook ou por aqueles com quem me cruzo por acaso. A todos pergunto como está a correr o processo de obtenção do direito de asilo. As respostas são desmotivadoras, num tom de quem foi obrigado pela vida a ser paciente. Já faltou menos, digo sempre, vai tudo correr bem.
Hoje os encontros foram ainda mais cinzentos: “se eu já tinha pouca esperança, depois disto, só pode piorar”, disse-me Mustafa, o neurocirurgião iraquiano, que trabalhava comigo no campo, refugiado voluntário dos Médicos do Mundo.
Andámos meses em prevenção do terrorismo, a cidade foi povoada de tanques e militares, constantes controlos policiais discriminatórios a todos os homens de aspeto árabe, cultivámos medo e insegurança, restringimos liberdades e sentimos o frio da desconfiança. Tivemos medo uns dos outros e não foi por isso que conseguimos evitar os atentados. Acabámos por dar força aos terroristas, aumentando a nossa fragilidade. Sucumbimos ao seu poder de nos mergulhar no medo e no ódio.
Entretanto a Europa fechou as fronteiras e atentou aos direitos humanos com um acordo de trocas e baldrocas com a Turquia. Pessoas em desespero continuam a chegar às ilhas gregas, com a diferença de que agora são recambiadas, em troca de outras, mais convenientes ao egoísmo das democracias europeias. É triste saber que tudo isso acontece aqui ao lado. Que há, na nossa paz europeia, crianças a ser atacadas por gás lacrimogéneo, mães a dar à luz em linhas de comboio, bebés que morrem na terra e no mar, homens que se imolam em protesto, pessoas enterradas na indignidade, presas num mau remédio que escolheram para fugir ao terror. E continuam a lançar-se bombas na Síria.
Agora estamos em guerra. Com o “Estado Islâmico” ou com a barba do vizinho, no Facebook ou no autocarro, com os refugiados e com os que lá ficam. Até podia dizer que já não nos lembramos de que há milhares de pessoas a morrer no mediterrâneo. Infelizmente sim, só que a confusão cresce de tal forma, com a inteligência a ser fintada pelo medo, que até os mais informados participam na islamofobia que se instala e gritam do seu refúgio, por trás das teclas, que não queremos muçulmanos na Europa. É urgente parar para refletir e pensar a paz em conjunto, deixar de perder tempo com bodes expiatórios e concentrarmo-nos na origem do problema, para o podermos combater.
Hoje, mais do que nunca, precisamos de calma e inteligência. Precisamos de força pela união e solidariedade, de olhar mais à frente e de nos informarmos, para que a manipulação da violência não nos tolde o pensamento.