O título deste artigo poderia ser Salgado, Sócrates e as verdades jornalísticas. Mas não caberia no espaço em cima e seria redutor. São dois processos emblemáticos, impensáveis há bem pouco tempo, e é por isso que andam não só nas páginas da Imprensa e nas antenas das televisões e rádios mas também em todas as conversas de café.
Ouvir Ricardo Salgado contar a sua versão dos factos no Parlamento não nos deu a verdadeira história da queda do império Espírito Santo. Nem nos deixa com uma versão imparcial sobre a “bondade” da gestão do GES nos últimos anos. E José Maria Ricciardi não defraudou quem teve a paciência de esperar pelo seu depoimento: fez acusações de falta de transparência, de gestão opaca e unipessoal e de irregularidades várias nas contas do GES – de “prejuízos escondidos” a “contas falsificadas”. Um contraditório eficaz, mas que não deixou tudo esclarecido.
Apesar de tudo, ficou clara a existência de um processo gradual de desespero dentro do GES, do descalabro imparável, acelerado pela crise financeira internacional; ficou clara a espiral de “fuga para a frente”, as divisões na família e o “divórcio” de Ricciardi; a demora na atuação do banco central, o alheamento do Governo, o isolamento crescente do GES e do BES. E também ficaram claras as razões de queixa de Salgado sobre o poder político e regulatório português, condicionados por entidades externas, na gestão do processo de extinção do BES.
O caso Sócrates é diferente. Não há uma realidade visível que sirva de “pano de fundo”. Para além das acusações que lhe são feitas pelo Ministério Público, não existe qualquer informação oficial das partes. O que existem são centenas de páginas e de horas de transmissão com histórias investigadas por jornalistas e espaços de opinião. A que se somam milhões de comentários nas redes sociais e nos mais diferentes “sítios” da internet. Além de um enquadramento político–partidário que também não pode ser ignorado. É possível evitar que uma coisa destas aconteça? A resposta podia ser esta: é possível prender um ex-primeiro-?-ministro e esperar que toda a gente fique quietinha, em venerado respeito pelo segredo de Justiça?
Mas ao contrário do que resultou de muitos outros casos, o de Sócrates teve o condão de colocar muita gente a discutir o segredo de Justiça e o comportamento dos jornalistas com inusitado afinco. ?É altamente censurável que um qualquer agente da Justiça crie as condições ?para que uma detenção seja feita ?com cobertura televisiva. E por maioria de razão quando se trata de um ex-?-primeiro-ministro. Mas sobre o segredo de Justiça, há apenas que registar, uma vez mais, que não funciona. E que não passou a funcionar melhor a partir do dia em que, num Governo de Sócrates, se apertou a sua malha, com o objetivo de submeter os jornalistas a uma disciplina administrativa a que são alheios.
Nomeadamente em matéria de responsabilidade criminal, o “caso” GES vai ainda no adro. Mas a história de fundo é hoje conhecida de todos. Não só por causa das inúmeras peças jornalísticas que foram produzidas, como, agora, e cada vez mais, por causa dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito. Os seus objetivos e regras não se confundem com a aplicação da Justiça. Mas o seu funcionamento, à porta aberta, em torno de um caso tão complicado como o do GES, prova que existe uma margem muito grande de informação que pode chegar ao público. Ouvimos “a verdade” no Parlamento? Apurámos “culpas” nas transmissões em direto? Não. Mas é precisamente neste acesso dos cidadãos aos casos e às diversas “verdades” de cada um dos seus protagonistas que a Justiça se devia inspirar para resolver os seus permanentes dilemas com a gestão da informação sobre os processos que tem em mãos.
O segredo de justiça é por vezes indispensável ao funcionamento da Justiça? Admitamos que sim. Mas admitamos também que esse segredo não precisa de ser absoluto nem pode durar tanto tempo. E que o papel da Comunicação Social – que não é o de julgar pessoas mas sim o de dar informação de interesse público – não pode ficar suspenso, à espera da Justiça.
É razoável deter um ex-primeiro-ministro, ou o principal banqueiro do País, e deixar toda uma população “pendurada” em meia dúzia de linhas de explicação sem substância? Numa sociedade minimamente saudável… não, não é. E não há segredo de Justiça nem contenção jornalística que consiga contrariar esta evidência.