O País começa a estar cansado de tanta corrupção, mas tem de perceber que a corrupção existe, e não apenas em Portugal. E que, sendo assim, o normal é que as sociedades combatam a corrupção, que levem a julgamento os seus cidadãos corruptos, mesmo que eles sejam ricos e poderosos, mesmo que eles sejam ex-primeiros-ministros. O contrário é que não seria normal nem desejável: que a corrupção estivesse lá, bem instalada, num silêncio cultural e cúmplice. Numa democracia, somos todos iguais, mas não tenhamos dúvidas de que há quem seja mais igual que os outros. E ao contrário do que muitos pensam, para o bem e para o mal. De cada vez que um ministro, um alto dirigente da Administração Pública, um grande empresário, um autarca, um magistrado, um professor… e por maioria de razão um ex-primeiro-ministro é acusado e condenado a pena de prisão, o sistema social e político, abalado, fica mais frágil.
Sócrates é inocente até prova (provada em tribunal) em contrário. E é ex-primeiro-ministro. Mas não teve direito a tratamento especial. Apanhou prisão preventiva. Hoje, depois de tantas horas de diretos em televisão e rádio, já não há português que não saiba quais são as justificações mais comuns para a medida de coação mais penalizadora de todas. E apesar de serem muito poucos os que poderão dizer se esta é ou não a medida mais adequada à situação concreta do “suspeito” José Sócrates, toda a gente sabe, pelo menos, que é a medida de coação mais pesada que lhe podia ter sido aplicada e que é inédita, tratando-se de um ex-primeiro-ministro.
O EX-PRIMEIRO-MINISTRO foi apanhado pela polícia com o “folclore” dos últimos tempos, sem hipótese de ir prestar declarações pelo seu pé e sem direito a qualquer sigilo ou reserva: teve “honras” de acompanhamento televisivo 24 horas por dia, apanhado pelas câmaras em todo o sítio de onde saiu ou onde entrou. Sobre a cobertura mediática, quem aceita ser figura pública numa sociedade moderna e democrática faz como que uma espécie de casamento com os media: eles vão estar lá, nos bons e nos maus momentos. E, sobretudo, nestes, porque nos outros não falta nunca gente que os acompanhe.
Já sobre a necessidade da “humilhação” da captura pública e da pena de prisão preventiva, devia a justiça dar explicações mais concretas aos portugueses. Mesmo que sejamos todos iguais perante a lei, este é, de facto, um caso especial: José Sócrates não é igual a todos os outros perante a opinião pública, pelo que se impunha um esclarecimento público mais pormenorizado. Mas esta é já uma pecha antiga da nossa Justiça: presa a velhos conceitos de imagem e poder, não sabe, nunca soube, relacionar-se com os jornalistas e com os cidadãos, na era das sociedades de informação.
José Sócrates terá a sua narrativa sobre toda esta história. Terá a sua opinião sobre as acusações que lhe são feitas e a sua interpretação dos factos que lhe são imputados. E é justo que se aguarde que os esclareça, antes de se tirarem conclusões precipitadas.
Mas é também do mais elementar bom senso que o PS deixe de fazer figuras tristes, não se amarrando às teses cabalísticas que lhe servem de defesa ou distraem do essencial. Mesmo que seja inocente em todos os alegados casos que carrega às costas, Sócrates tem um passado que, não o tornando culpado neste processo, também não contribui para que toda a gente olhe para ele como um homem que, simplesmente, por obra e graça do Espírito Santo, atrai todas as conspirações.
Porque não é por causa das conspirações da Justiça que o regime está em risco. O que coloca o regime em risco é a corrupção e a incapacidade que as lideranças têm de separar a sua vida privada da sua vida profissional, seja nos negócios seja na política. Verdade aplicável também aos partidos.
A amizade, assim como a camaradagem, no seio de um partido, são coisas bonitas tão bonitas que até admitimos que possam ser estúpidas ou cegas.
Mas são estados de espírito da esfera pessoal. Não devem ser chamados para o domínio público. Sobretudo, não os queremos a determinar a ação política, na cabeça de gente que sobrepõe amizades pessoais ao interesse público e ao dever de verdade, transparência, e também de lealdade aos militantes dos seus partidos e aos cidadãos que se propõem servir.
Infelizmente, esta, sim, é a triste e verdadeira narrativa dos últimos anos.
E uma das principais explicações para a podridão dos nossos partidos de poder.