O menino Brasil
Um homem com rugas antigas e respeitabilidade inquestionável dizia-me “Estou tão envergonhado”. Uma mulher elegante e com netos lamentava-se, diante de mim, na pausa de uma reunião de trabalho “Que vergonha”. E Isaías, o porteiro que escuto reverencialmente quando fala de bola, afundou as mãos nos bolsos e repetiu uma e outra vez “Vergonha, vergonha, vergonha.”
Volto a escrever sobre este sentimento de constrangimento e demérito, que parece ter infiltrado a autoestima de muitos brasileiros com a inclemência da gripe espanhola, porque é poderoso e me deixa tão fascinado como já deixara a forma como os brasileiros vivem a Copa e a seleção.
Não será uma generalização perigosa dizer que o brasileiro é passional, que aqui as emoções são valorizadas, em vez de reprimidas, se não mesmo hiperbolizadas. Quando me mudei para o Rio, uma imagem fixou-se na minha cabeça. Aqui, tudo é mais à flor da pele, mais carne viva, como se, de repente, a mágica travessia do Equador nos arrancasse do corpo a película que nos servia de filtro de contenção e nos deixasse mais em carne viva. O que quero dizer é que o Brasil é intenso, tal como são as suas gentes e que, sem pretensões de deitar o país no divã, julgo perceber agora, como nunca, a relação dos brasileiros com o futebol, tal como alcanço hoje muito melhor a frase de Nelson Rodrigues “O Brasil é a pátria de chuteiras”.
Julgo que, por ser estrangeiro, as pessoas que manifestaram esse sentimento de vergonha – e foram muitas, ao ponto de eu querer voltar a escrever sobre o assunto -, sentiam necessidade de justificar-se pela derrota, de desculpar-se, misturando a incredulidade com o desmerecimento, revelando tristeza e revolta. Julgo que senti algo próximo quando Portugal perdeu com a Grécia na final do Euro 2004. Mas, porque aqui o futebol é um atributo da identidade do Brasil que suscita um orgulho singular – mais do que a sua música, a sua literatura, a sua natureza ou a sua arquitetura -, a queda na derrota é tão assombrosa como foi a velocidade e a intensidade da subida.
Disse a todos, genuinamente enternecido, que entendia a vergonha, mas que o Brasil não podia ser reduzido a uma derrota num jogo de futebol, e que, apesar dos problemas deste país – bem mais vexatórios do que uma goleada -, o que as pessoas irão recordar desta Copa, pelo menos as que nos visitaram, não encontra um oponente de peso na derrota por 7-1 numa semifinal.
De nada valeu. Isaías continuou com os punhos escondidos nos bolsos e de olhar perdido na rua: “Vergonha”.
Por vezes, imagino o Brasil como um menino – um menino cheio de vigor e empolgação, um menino extrovertido e desmoderado, traquina e até mal comportado, que se apaixona como os poetas, e que, quando sofre, soluça com uma dor proporcional ao entusiasmo dos tempos felizes. Um menino que sente tudo intensamente. Um menino que, rodeado tantas vezes de crime, corrupção e descaso, ainda conserva recantos impolutos na alma.
Acho que foi isso que quis dizer quando coloquei a mão no ombro do Isaías e, como se lhe desse um abraço, disse: “Não esquenta não, camarada.”
Os Hermanos
De há uns tempos para cá comecei a notar que havia vários brasileiros que simpatizavam com a seleção da Argentina. Esse sentimento intensificou-se quando vi o senhor Francisco do quiosque dos jornais com uma camisola da Argentina na manhã após a goleada da semifinal. Disse-me, apontando para as veias do antebraço: “Aqui corre sangue italiano”. Também disse: “Eu gosto é de corridas de cavalos, mas devia ter apostado na Argentina.” Nos dias seguintes, vi mais brasileiros a confessar o seu apoio pela seleção de Messi e a usar as camisolas alvicelestes – muitos por simpatia, uns quantos por despeito para com a seleção brasileira. Deve ser uma nova tendência, ao ponto de uma reportagem televisiva tratar do tema – na qual se podia ouvir, entre outros, uma criança brasileira a declarar o seu apoio aos argentinos.
Entre Brasil e Argentina existe uma rivalidade futebolística que encontra o seu paroxismo na disputa pelo título de melhor do mundo – Pelé ou Maradona – e que chega, por vezes, a vias de facto, como aconteceu em algumas cidades, durante a Copa, quando adeptos de ambos os países, que nem sequer jogaram entre si, desataram ao pontapé e ao estalo. Nas bancadas, quando a Argentina disputava os seus jogos, a torcida desafiava, com cânticos, os espectadores brasileiros. Para se ver a importância que a Argentina dá ao seu rival, a canção mais popular desta Copa trata da vitória sobre o Brasil, no Mundial de 1990, quando a Argentina chegou à final mas não foi campeã. E começa: “Brasil diz-me o que sentes por ter em casa o teu papá”, um verso ainda mais jocoso agora que a Argentina jogará a final no Maracanã.
A novidade, no entanto, não parece ter contaminado a maioria dos brasileiros. Ontem, no elevador, uma vizinha desabafou: “Minha alma deve ser pequena, porque eu prefiro que a seleção jogue pelo terceiro lugar do que ver a Argentina ser campeã no Brasil.”
Chuta para canto
Jogar amanhã, para disputar o terceiro lugar, é como forçar um casal, que acabou de assinar o divórcio, a dormir junto uma derradeira vez – com a obrigatoriedade de ambos terem um orgasmo. Van Gaal, o treinador holandês, que defrontará o Brasil na capital do país, expressou o desagrado com este jogo, considerando-o desnecessário e, para o qual, será difícil motivar os seus atletas. Não é a primeira vez que se questiona a necessidade de disputar o terceiro lugar deste torneio – não são os Jogos Olímpicos, onde o bronze ainda vale alguma coisa. O Brasil vem de uma derrota que deve ter deixado os jogadores em posição fetal na noite após o jogo. Os atletas da Holanda – que perdeu a última final e foi derrotada pelos argentinos nos penáltis – terão nas pernas e no peito o peso, a impotência e a amargura de morrer sempre na praia. Os adeptos estão tristes, os jogadores a pensar nas férias. Fala-se de honra, de preservar a imagem, de ter mais uma partida, mais tempo para os anunciantes nas transmissões de TV. Para mim, o jogo de terceiro e quarto lugar continua a parecer-me tão dispensável como ver um jornalista a perguntar “O que é que sente?” ao entrevistado que acabou der perder um filho.