1 – Nos últimos anos, a frase que faz o título desta crónica – “Imagina na Copa!” – deve ter entrado na lista das novas expressões mais usadas pelos brasileiros. Se a praia está a abarrotar de gente, se o trânsito se torna mais enlouquecedor e punitivo, se há fila para isto e espera para aquilo, enfim, se algo corre mal e a internet anda tão lenta como um Spectrum 48 K, lá se ouve o bordão “Imagina na Copa!” A frase, embora dita muitas vezes em jeito de piada, é uma espécie de lamento lúcido e resignado, um suspiro diante das condições adversas do presente e da suspeita de que o futuro não promete melhoras. Se os dias, por norma, costumam ser difíceis, então iriam ser ainda mais difíceis durante a Copa, com a chegada de milhares de visitantes.
2 – Tão perto da estreia do grande torneio, sabe-se agora que o “Imagina na Copa!” tinha alguma razão de ser. Parece estranho, afinal o pessimismo não é atributo que se associe a este povo. E talvez esta seja apenas a percepção de um lusitano desassossegado com o atual estado de alma da cidade que escolheu para viver – uma cidade tão arrasadora na sua beleza como castigadora para os seus nativos. Não, não sou só eu, garanto que este desassossego não é apenas legado do cromossoma melancólico que atribuem aos portugueses. É um desassossego de cá, um mal estar coletivo, uma frustração e uma revolta que se podem palpar – na rua, nos transportes públicos, nos shoppings, nas greves, nos bancos fechados há semanas, nos protestos que param o transito, em tudo o que funciona mal, nas infindáveis histórias de violência, desleixo, impunidade ou soberba -, um sentimento que, aliás, se revela no crescente número de amigos cariocas, e alguns estrangeiros, que deixaram a cidade, mas também na frase que escuto pelo menos uma vez por semana: “Se pudesse ia embora”.
3 – Isso não quer dizer que os cariocas não estejam entusiasmados com o Campeonato do Mundo. Nas calçadas, já se veem pais e filhos com o equipamento da “Canarinha” e algumas ruas tremeluzem um mar de bandeirinhas verdes e amarelas. Dizem-me, no entanto, que a euforia e a decoração da cidade estão aquém de Copas anteriores. Mas também me dizem que se o Brasil for avançando o grito se tornará um rugido.
4 – Quando regresso a Portugal ou recebo amigos portugueses ou estrangeiros no Rio, perguntam-me sobre o que irá acontecer durante a Copa. Haverá manifestantes a pegar fogo às grandes cidades e os estádios estariam acabados? Não tenho uma apetência especial para fazer adivinhações e previsões, contudo, atrevo-me a dizer que vai correr bem e que vai correr mal.
5 – Sim, vai haver estrangeiros com escaldões do sol tropical, uns quantos serão roubados, e todos pagarão preços obscenos enquanto cá estiverem. Uns irão esperar na fila de um hospital onde faltam médicos, outros discutir com taxistas, com garçons e empregados de hotel. Sim, vai haver atrasos, engarrafamentos, rixas. Vai haver queixas por causa da internet, de pequenas burlas, de contas de restaurante inflacionadas, de cartões clonados, do péssimo serviço de telefonia móvel. E sim, os movimentos radicais, as organizações criminosas, os partidos extremistas ou qualquer aventureiro com uma causa e um protesto vão tentar sair para a rua. Nesse caso, é provável que haja confrontos com a polícia. Só resta saber se essa violência será em redor dos estádios e nas zonas turísticas ou se, como aconteceu ao longo do ano passado, será mais dirigida a edifícios públicos, sedes do poder político e comércio – especialmente grandes corporações e bancos.
6 – Mesmo que os espectadores do jogo Irão – Bósnia vejam um ônibus a arder, um alemão seja atropelado por uma van ou um russo acorde num hotel da Lapa para descobrir-se sem relógio e sem carteira até que um delegado de polícia lhe tente explicar, num inglês de quem vai muito ao cinema, que a droga que a prostituta usou se chama “Boa noite Cinderela”; mesmo que os aeroportos entupam e a CNN entreviste gringos ultrajados com a qualidade dos aposentos mofentos pelos quais pagaram o preço de dois rins saudáveis; mesmo que acontecimentos menos felizes e até alguma violência venham a contrariar o mantra brasileiro do otimismo (e por vezes do desengano) – “Vai dar tudo certo” -, garanto que a grande maioria dos visitantes irá curtir para cacete neste mês de Copa. Afinal, eles estão a visitar o Brasil, durante um Campeonato do Mundo, e fazem parte da mística e da singularidade do momento. Estão num dos destinos mais glorificados e romantizados do planeta, de férias, com amigos ou família, a ver as melhores seleções do mundo. Sejamos sinceros, se os mosquitos da Amazônia, o trânsito de São Paulo ou os assaltos de pivetes no calçadão de Copacabana podem perturbar a experiência do adepto e turista, a verdade é que ele vai regressar a casa contente. Um dia, um amigo espanhol disse-me: “Eu vi o Maradona jogar no Bernabéu. E isso já ninguém me tira.” Quem vier ao Mundial do Brasil poderá revindicar exatamente esse tipo de sentimento. Estou convencido que, para os adeptos, e apesar de todos os contratempos e transtornos, o mundial vai dar mesmo certo.
Já para os brasileiros, a história é outra, porque o estado intratável das coisas não acaba com a final do Maracanã nem será resolvido com essa fé de achar que, por bondade do universo para com o povo brasileiro, vai dar sempre tudo certo.