Entras na marginal como fizeste tantas vezes antes, tens o mar de um lado e os carris do outro, ouves o vento nas falésias e o silvo prateado do comboio que te levava para a escola. Foi aqui que cresceste e é aqui que regressas sempre, ainda que daqui também tenhas escapado, desconfiando que o tamanho do mundo se opunha ao microcosmos desta riviera lusitana, onde dar apenas um beijinho é tique de classe e há tantos carros topo de gama como tias que preferem dizer encarnado em vez de vermelho.
Mas não são as idiossincrasias deste território, que antes acolhia reis exilados, que agora mais te importam – tratam-se apenas de detalhes anedóticos se comparados com a intempestiva agitação no teu sangue, um rumor de melancolia emitido a partir do fundo de ti e que toca mais alto do que o rádio do carro.
Estás feliz, afinal esta é a tarde da tua chegada, dentro de um par de dias o caçula da família casa-se e tu e os restantes irmãos serão os padrinhos. Vais ver os teus pais, os teus sobrinhos, os teus amigos e, no entanto, o sol da primavera inicial não chega para mitigar o frio que ainda se derrama do longo inverno e que afeta agora os mecanismos mais delicados do teu coração saudoso, chegado dos trópicos. Estás feliz e triste, uma confusão que não consegues desatar e por isso segues adiante.
Na praia de S. Pedro lembras-te das miúdas que se despistaram quando tinhas 17 anos e que morreram queimadas dentro do carro. Sabes ainda de cor os seus nomes e as suas caras, tiveste um fraquinho por uma delas quando se cruzaram numas férias no sul de Espanha. Tinha olhos azuis de desenho animado e não era a mais gira do grupo. Mas era a mais delicada. Em S. João vem-te à memória a tarde em que o Fernando, aka, Besungas, tentou fugir à polícia na sua XT 600 e ficou entalado, com a moto, entre duas árvores. Na descida do Hotel Paris (agora tem outro nome, não sabes qual) recordas como o Lagarto conduzia um Fiat podre com um copo de whisky na mão das mudanças, façanha que, entre outras, originou o aforismo: “O Lagarto não tem álcool no sangue, tem sangue no álcool”.
Lembras-te da velocidade desses dias, viagens noturnas de moto com as peseiras a roçar no alcatrão e nenhum capacete. Tudo era possível e mesmo a morte de quem conhecíamos não era suficiente para que acreditássemos que nos conseguisse apanhar. Saltávamos de rochas para o mar, faltávamos às aulas e entrávamos na sala de jogos da Praia do Tamariz para gastar moedas, em máquinas e matraquilhos, com a convicção de quem inicia um movimento de guerrilha ou pontapeia as portas do saloon.
O Fernando morreu de cancro antes dos 40. O Lagarto também. Só te consegues lembrar deles dançando em cima de colunas, em discotecas, engatando miúdas, quando eram rapazes que te pareciam tão crescidos e sabidos e, contudo, reconheces agora que eram apenas miúdos.
O senhor António da mercearia também morreu, a loja está fechada, com tapumes. O Hotel Atlântico deixou de existir e o Estoril Sol, onde mergulhavas da prancha mais alta (só de pés) foi substituído por uma espécie de nave espacial que alberga inquilinos de luxo. O Pavilhão do Dramático de Cascais, onde se faziam concertos metaleiros e onde também viste o caçula jogar hóquei em patins, foi demolido e o bar dos Morgados, onde o teu irmão mais velho combateu uma figura mítica – com rabo de cavalo, de nome Traineira -, desapareceu no dia em que mandaram abaixo a Praça de Touros. Tudo isto só existe na tua cabeça e na dos teus amigos e irmãos, e talvez por isso repitam tantas vezes as mesmas histórias.
Segues para a estrada do Guincho. Tentas encontrar algum sentido em toda esta nostalgia quando passas pelo farol da Guia, depois pelo farol dos Oitavos e avistas o farol do Cabo da Roca no topo de uma escarpa que parece a pata de um ser ancestral e adormecido. Sentes-te pequeno, não menino, mais quebradiço diante da imponência do cabo, da serra e das ondas que insistem em morder as rochas. Páras o automóvel e sais, mas o poder romântico e metafórico dos faróis não te explica a tristeza antiga que se aninhou como um bicho atrás do teu peito.
Dás a volta com o carro e tomas o caminho da pastelaria onde lanchavas depois da escola. E é então que os vês, o rapaz inclinado sobre a rapariga, ela encostada num muro, ambos com a postura dos adolescentes que estão prestes a beijar-se – a vergonha e a sofreguidão. Ela sorri, ele faz pose e apoia a mão no muro, fica mais perto. Não sabes se chegaram a beijar-se, mas por um instante pudeste sentir o frescor antes da estreia, quando um beijo na boca é um evento extraordinário e o toque da pele por trás do soutien é algo tão desconhecido como frequentemente imaginado. Não falo apenas das paixões assolapadas ou da surpresa de ver uma mulher despir-se pela primeira vez. Mas de tudo o que estava por acontecer, quando achávamos que as nossas vidas eram suscetíveis de resultar em cinema e amanhã era apenas mais um dia da nossa infinidade. Falo de quando não tínhamos ido muito mais além de Badajoz ou de um beijo sem língua durante um jogo de bate-pé. Falo da ilusão de que tudo correria bem e de que seríamos assim para sempre.
Páras o carro no lugar combinado e vês o teu irmão. Vais abraçá-lo e, de seguida, experimentar a roupa do casamento. Sozinho, no provador, enquanto ele te espera no outro lado, não podes deixar de pensar no dia em que o viste pela primeira vez no berço. Dás-te conta de que esta não é uma viagem sobre o que se perdeu, mas sobre aquilo que passou por ti, tudo o que circula no fluxo sanguíneo da tua consciência: os mortos, as camas, os bares, as épocas, as músicas, as alcunhas, as incontáveis histórias que te fazem perceber como chegaste até aqui, diante de um espelho, padrinho de casamento do teu irmão pequeno.
…
Todos dançam lá dentro. Passa da meia noite e, outra vez sozinho, fumas e bebes diante de uma fogueira no jardim. Tens uma lucidez improvável, especialmente se considerarmos que estás num casamento e de copo na mão, mas é como se tivesses a certeza de que o universo não julga nem pune, que o acaso é tão importante como o caráter, e que há uma certa paz em aceitar que tudo passa. Para quem, como tu, não acredita em deus nem numa vida além da morte, é nesta vida, e não durante a ascensão aos céus, que o milagre se desvela, mas aos poucos, em fragmentos, na mão que segurava a tua ao longo da marginal, no teu pai rodeado de filhos e netos, no menino e na menina que apareceram no jardim e, sem darem conta da tua presença, se fixaram na fogueira. Ele lançou um pedaço de lenha no fogo e olhou para ela. Depois perguntou-lhe:
“Queres fazer uma corrida?”