O PCP celebrou com pompa e circunstância o centenário de Álvaro Cunhal. Visitei espontaneamente, como qualquer cidadão, que aliás sou, isto é, sem prevenir ninguém, a exposição que o partido organizou e abriu ao público no Pátio da Galé, na Câmara Municipal de Lisboa. As duas senhoras que me atenderam, muito amavelmente – e me reconheceram – não me deixaram pagar o bilhete de entrada e só permitiram que comprasse o catálogo.
A meio da visita apareceu o camarada Domingos Abrantes, com o qual convivi quando estávamos ambos exilados em Paris, e que me acompanhou até ao fim. É uma exposição interessante e em que só aparece Álvaro Cunhal – e a sua família – quase desde o nascimento, surgindo no fim um único retrato do atual líder do PCP, Jerónimo de Sousa.
Conheci Álvaro Cunhal quando, depois da sua primeira prisão, saiu e não tinha emprego, e, já formado em Direito, com alta classificação, o meu pai o recebeu no Colégio Moderno. Cunhal nunca quis exercer a profissão de advogado, ao contrário do seu ilustre pai, grande jurista, professor, advogado, escritor e artista plástico. Mais tarde, aliás, tive a honra de o conhecer bem e de me tornar seu amigo. Tanto que, quando deixou de advogar, passou alguns dos seus clientes ao jovem advogado que eu era então.
Sempre tive fascínio, e depois admiração genuína, por Álvaro Cunhal, que era regente de estudos, sendo eu estudante do ensino secundário. Tinha um rosto muito original e uns olhos que nos perfuravam e impressionavam. Não posso negar que teve uma grande influência em mim, estávamos então em plena II Guerra Mundial, ele falava-nos da resistência antifascista e antinazi e das novas auroras de um mundo diferente que aí viriam… Marcou-me profundamente, embora só depois dele estar na clandestinidade me tenha tornado comunista. Por pouco tempo, aliás.
Encontrei-me com Cunhal na clandestinidade, na Figueira da Foz (em Buarcos) e depois da sua longa prisão e da sua fuga espetacular de Peniche (estive preso, por pouco tempo, nessa altura, na Penitenciária, mas nunca nos vimos). Encontramo-nos em Paris e na Checoslováquia, quando me pediram para lá ir (com passaporte falso, claro) para ver o general Delgado, muito doente e acabado de ser operado. Então já não me tratou por tu nem por camarada, nem sequer me agradeceu, visto eu ser já socialista.
No pós 25 de Abril, desde o 1.° de Maio, percebi que me via como um adversário, ao contrário do que combináramos em Paris, no exílio. Houve um choque a partir das primeiras eleições, que o Partido Socialista ganhou por grande diferença. Os leitores conhecem todo o resto. Sabem que Cunhal reuniu duas vezes o Partido. Uma para dizer que nunca me apoiaria como candidato a Presidente da República. E outra para aconselhar, como disse, com muita graça, a uma peixeira, para que tapasse com a mão a minha cara, mas pusesse a cruzinha no sítio para votar em mim. Uma vez eleito, mantivemos sempre relações cordiais. Pelo meu lado reconheço que sem o seu auxílio não teria nunca sido Presidente da República. E não esqueço isso.
Nos seus 80 anos, era eu Presidente, escrevi um artigo a dar-lhe os parabéns, de que muitos anticomunistas não gostaram e que nunca compreenderam. Aliás, quando foi do 25 de Novembro – e eu estava no Porto – houve muita gente que queria destruir o PCP. Mas, como se sabe, opus-me claramente a essa ideia. Porque considero que o PCP tem todo o direito de lutar pelo que crê justo. E estive depois no funeral de Álvaro Cunhal, como me cumpria, com profunda emoção. Foi alguém que, repito, sempre, admirei desde que o conheci. Um homem político que sempre considerei excecional, apesar dos conflitos ideológicos, políticos e sociais que tivemos.