Sou uma pessoa de pessoas. Digo muitas vezes aos meus clientes: “O que vou mostrar-lhe não é nada que não descobrisse sozinho.” Mas não em duas ou três horas. E se me contarem os interesses deles, personalizo ainda mais o passeio. Trata-se de uma experiência imersiva. Comigo, experimentam cheiros – levo-os à livraria Bertrand para cheirarem o papel ou à Brasileira do Chiado para cheirarem o café. Comigo, descobrem os sabores – levo-os ao Afonso das Bifanas, na Rua da Madalena, para comerem pataniscas. Faço uma reportagem fotográfica e no final envio-lhes pelo WhatsApp, junto com um link de uma playlist de fado.
Há dez anos, quando comecei a conduzir a Piaggio tuk-tuk era maravilhoso, pensava nisto como o melhor antidepressivo, depois de 18 anos a trabalhar no mundo corporativo de uma grande multinacional. Para mostrar o centro histórico da cidade, há sítios aos quais não posso fugir, tenho de ir à Baixa, a Alfama, à Graça… É um privilégio ter um escritório destes. Hoje, com 58 anos, estou quase semirreformada, pois já só aceito marcações.
Os meus locais preferidos vão dos Restauradores passando pelo Rossio, toda a subida até ao Chiado, assim como a zona de Belém, junto ao Padrão dos Descobrimentos e à Torre de Belém.
No Miradouro da Senhora do Monte já vi outros condutores a apontarem para a Costa da Caparica e a dizerem que é Sintra ou que “lá para cima é a Nazaré”, das big waves. Também continuo a ouvir chamar Champ d’Ourique ao bairro de Campo de Ourique. É surreal, assustador. Eu falo português, inglês e francês fluente, o que é um fator diferenciador
A Associação Nacional de Condutores de Animação Turística e Animadores Turísticos tem tentado, junto do Turismo de Portugal, que seja criado um curso de certificação para os animadores antes da inscrição no registo nacional, que continua a ser uma licença dada às cegas. É por isso que ninguém consegue dizer quantos tuk-tuks há em Lisboa. Defendemos que tenha de se passar por uma formação, para saber, no mínimo, a História de Lisboa e o mapa de Portugal. A verdade é que somos embaixadores da cidade, criamos a impressão com que os turistas ficam dela.
“Sustos que me valeram lições de vida”
Quando comecei, demorava entre uma e três horas, no máximo, numa tour. Tive dias em que ia duas vezes ao Cristo Rei, em Almada. Hoje, posso demorar quatro ou cinco horas, ando com tranquilidade. Se sairmos todos à rua, não há lugares de estacionamento. E, a somar a isto tudo, temos uma cidade permanentemente em obras.
Já fui senhoria em Alfama, onde tive uma casa em regime de alojamento local, e compreendo todas as reclamações dos moradores das zonas históricas. Também trabalhei na Rua dos Remédios e ia ficando louca, eram mais de 30 tuk-tuks de manhã à noite. É óbvio que incomoda. Percebo perfeitamente as queixas das pessoas que moram junto à Senhora do Monte – quando chegam 60 coreanos, são seis tuk-tuks de uma vez só e contam-se duas e três excursões dessas por dia.
Ao longo da última década, não sinto mais insegurança, mas conheço os perigos. A partir de 2017, 2018, a cidade começou a ser invadida por carteiristas. Especialmente depois da pandemia, a situação tornou-se muito mais agressiva e mais explícita. São pessoas bastante reconhecíveis porque normalmente andam de cachecol no verão.
Entretanto, foi criado um grupo no WhatsApp, que reúne alguns condutores de tuk-tuk, para identificá-los e para partilhar os vídeos que os mostram juntos ou a atuar. Não nos inibimos de gritar pickpocket para avisar os turistas. Os carteiristas consideram-nos um perigo para a sua atividade e já tivemos alguns a ameaçar-nos com facadas e com pedras.
Em contraponto, os motoristas de táxi perceberam que os condutores de tuk-tuk não são um inimigo, porque um cliente que anda connosco também vai andar de táxi e vice-versa. Já os motoristas de TVDE passaram a transportar os clientes que vão de Belém para a Baixa de Lisboa, que os chamam em vez de esperarem pelo elétrico.
Já apanhei alguns sustos, que me valeram lições de vida e fizeram com que mudasse radicalmente a maneira de me movimentar no trânsito. Uma vez, em Alfama, quando transportava um casal com um filho, um fulano à minha frente parou de repente o carro, apitei-lhe e pedi que encostasse para eu passar. Ele passou-se da cabeça, pegou numa arma, apontou-a e, de seguida, deu um pontapé na frente do tuk-tuk. Depois de deixar os turistas, que estavam completamente em pânico, tive uma crise de choro enorme. A lição que tirei é a de que nunca se sabe quem temos pela frente.
Mas isso são exceções. Também já fiz algumas amizades. Lembro-me bem do caso de dois americanos, um realizador de cinema, que faz filmes de publicidade, e outro que fabrica fatos de motocrosse, que depois de um problema com o voo acabaram por ficar mais dois dias em Lisboa. Apanharam-me perto do restaurante Solar dos Presuntos, no Largo da Anunciada, fizemos uma tour divertidíssima para a Trafaria, passando pelo Cristo Rei e acabando na Cova do Vapor. Foi muito genuíno, de pé na areia, e eles perceberam logo que estavam a ter a verdadeira perspetiva local. Passado algum tempo, fui aos Estados Unidos e visitei-os. Uma das coisas maravilhosas desta profissão é poder ir aos sítios de que gosto.
Outra turista americana deixou-me em lágrimas quando, depois de dois dias a passear por Lisboa e Sintra, me disse que, tirando o dia em que o filho nasceu, aqueles tinham sido os mais felizes da vida dela. Há uma grande riqueza no ato de dar e receber. Tuk-tuks há em todo o mundo, mas a tocar fado só podem existir em Lisboa.
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros