Em 1959, entrei para o quadro da Custódio Alves Lda., uma empresa de pronto a vestir lisboeta que abriu uma loja em Aljustrel, onde eu vivia. Tinha 14 anos. Já trabalhava desde os 13, mas só podia descontar a partir dos 14.
Naquela altura não era uma coisa estranha. A maior parte das crianças da aldeia terminava a quarta classe e, a menos que fossem filhos de merceeiros ou de algum lojista, não continuava a estudar.
O dinheiro não abundava, as nossas famílias precisavam dele e nós tínhamos de aprender uma profissão. Uns apanhavam azeitona, outros iam mondar ou para a ceifa do trigo, havia quem guardasse vacas e porcos e quem começasse a ser aprendiz numa oficina.
Ao contrário do meu emprego na loja de pronto a vestir, nenhum destes trabalhos, que tinham os meus amigos, era pago durante o primeiro ano.
Na Custódio Alves, comecei por distribuir publicidade durante uns três ou quatro dias e depois fiquei na loja, a arrumar os fatos e a ajudar com outras coisas. Entrava às nove e saía às sete, tinha horas de almoço, ganhava 120 escudos por mês, que dava para um avio na mercearia, e descontava para aí um ou dois escudos para a Caixa de Previdência, descontos que foram buscar quando me reformei, em 2014.
A maior parte do pessoal andava descalço e de calções, mesmo no inverno. Lembro-me de que comprei o primeiro par de ténis quando comecei a trabalhar, mas tirava-os sempre à hora de almoço, quando jogávamos todos à bola.
Foram muitas as vezes em que nem cheguei a ver o ordenado ao fim do mês. Numa casa de cinco filhos, com uma mãe doméstica e um pai que afiava serras na mina, a necessidade era muita e a minha mãe dizia-me para pedir ao patrão se podia pagar-me pelo menos 50 escudos logo a meio do mês.
Nunca comprei nada de lazer. Até a bola de futebol era sempre a mesma. E mesmo quando, aos 16 anos, mudei de ramo e comecei a ganhar gorjetas a servir às mesas, se comprasse coisas para mim eram sempre calças, uma camisa ou um par de sapatos. Comprava o tecido a metro e pedia à costureira se podia ir pagando cinco ou dez escudos todos os meses.
Nessa altura trabalhava praticamente em todos os cafés de Aljustrel. Comecei na copa do Café Aliança, a lavar copos, pratos e aquilo que aparecia, às vezes das oito da manhã às duas da madrugada, com uma hora de almoço e uma hora de jantar.
Mas rapidamente me aborreci disto e fui pedir ao dono do Café Central se podia ficar com o lugar de um moço que ia trabalhar para Lisboa. No Central trabalhava oito horas, ganhava 150 escudos por mês, mais as minhas gorjetazinhas, que todos os dias davam à volta de dez ou 15 escudos, e nas quatro horas de descanso entre os turnos ajudava outros cafés que precisassem. Não parava, davam-me uma sandezinha ou duas e ficava por ali.
No dia 28 de abril de 1962, havia uma manifestação grande na rua. O meu irmão mais novo estava lá e eu fui procurá-lo. Apareceu a GNR, de metralhadoras na mão, com o sargento Matias à frente, mandaram uma rajada e apanharam o Adanjo… Viraram-se para trás, onde nós estávamos, vá lá que as balas bateram no chão, mas apanharam o Madeira, que tinha ido fazer a barba numa barbearia ali na curva, com dois tiros na cabeça. Era sábado, um destes rapazes casava-se no domingo.
Começámos a fugir, fomos para casa, mas ainda fomos interrogados lá pela PIDE. Eu ia fazer 17 anos em junho, o meu irmão tinha 14.
“Já não há empregos para a vida”
Entrei para a mina precisamente no dia em que fiz 18 anos. Ali trabalhei em todas as áreas, da mecânica às locomotivas, como canalizador, serralheiro de bancada e com o escatelador. Só fiz uma pausa quando tive de ir para a tropa. Quatro anos, um mês, uma semana e um dia, bem contadinhos. Pagavam-nos 16 escudos por dia… uma miséria.
Casei muito novo. Éramos vizinhos e tínhamos uns 14 ou 15 anos quando começámos a namorar. Ela trabalhava em casa de algumas senhoras como cozinheira, namorámos até aos 19 e casámos com 20.
Decidi emigrar para a Alemanha em 1973. Um ano depois, precisamente em abril de 1974, consegui uma carta de chamada para a minha mulher, o meu filho e a minha filha poderem ir ter comigo. Tinha emprego numa fábrica e uma casa. Também fiz moldes numa fundição. Gostei bastante dessa profissão. Fazia moldes de bonequinhos de estanho, colheres decoradas, figuras, jogos de xadrez…
No verão de 1976 viemos de férias a Portugal e era outro país. Coisas nas paredes, o jornal do Avante!, as manifestações… Mesmo quando regressámos definitivamente, em 1984, ainda havia muito cheiro a 25 de Abril. Tinha comprado uma casa em Setúbal e ficámos ali.
Foi então que montei primeiro um café, depois uma firma com mais dois sócios, depois montámos uma outra de trabalho temporário e ainda outra de limpezas.
Infelizmente, com a crise que houve em 2010/2011, as empresas não faliram, mas tiveram de fechar. Reformei-me nesse ano, logo aos 65, mas ainda continuei com a empresa de trabalho temporário até 2014.
Hoje em dia, para ocupar o tempo, vou dar as minhas voltas. Encontro pessoal que conheço, amigos, fala-se um bocado na esplanada do café. Gosto de andar. Também costumava entreter-me muito com livros. Lia muito e de tudo um pouco. Mas com a internet, fui desligando dos livros. Uma pessoa vai ao computador, vê os jornais, depois entra no Facebook e é muita coisa. Até que larguei o Facebook, já faz três anos.
Para o ano que vem faço 80 anos, o trabalho já chega, fica para a malta nova. Um par deles é que tem juízo, trabalham oito horas e nem mais uma hora, se um patrão não dá o que querem mudam de sítio. Uma pessoa dantes tinha uma lealdade canina a um patrão. Trabalhei muitos anos, mas tive muito poucos patrões. As pessoas hoje mudam muito mais facilmente, mas a vida também mudou toda ela, tem de ser assim. Já não há aqueles empregos para a vida toda.
Depoimento recolhido por Mariana Almeida Nogueira