Desde criança, os meus melhores amigos são os livros. O meu pai tinha enciclopédias em casa e, antes de entrar no primeiro ciclo, eu já sabia ler e escrever algumas palavras. Ao crescer como filho único de uma família pobre, numa pequena aldeia do Interior chamada Zebreira, perto de Idanha-a-Nova, as leituras foram permanecendo como companhia e, talvez por isso, tirava boas notas na escola.
Assim continuei até ao 11º ano, mas nunca me passou pela cabeça seguir os estudos. Afinal, sou cigano, e os ciganos trabalham na venda ou no campo. Vivia convencido de que haveria de ser esse o meu futuro também. Estudar era perda de tempo, uma fantasia de criança a sonhar que seria um dia super-herói. No início do 12º ano, apesar de nunca ter chumbado e do apoio dos professores, desisti da escola.
Durante toda a vida, os meus pais viveram do trabalho de cigano, em mercados e feiras, a vender calçado. Como a maioria das famílias na zona, também chegaram a trabalhar nas plantações de tabaco, mas esse sustento acabou há mais de 15 anos. A região empobreceu ainda mais.
Eles nunca deixaram de insistir para eu completar, pelo menos, o ensino secundário. Uma vez que estive desocupado, durante esse ano sabático, acabei por ceder, mais para deixar de os ouvir. Completei o 12º ano, com média de 17,5 valores, e eles continuaram a pressionar-me para tentar a universidade. Sem grande entusiasmo, acedi novamente. Sempre gostei de Filosofia e Economia, mas escolhi seguir Gestão, no Politécnico de Castelo Branco, mais perto de casa.
Não é normal um cigano entrar na universidade. É como ver um cão a andar de bicicleta. Dentro da comunidade, existe o medo da perda de identidade, o que não faz muito sentido. Sinto-me cigano, os meus antepassados são ciganos, mas muitos deixaram de me ver como tal. “Quem? O Natanael? Esse não é cigano”, passámos a ouvir.
Era ostracizado, os meus pais revoltavam-se, mas essa visão começou a mudar a partir do momento em que ganhei notoriedade na comunicação social. Foi quase uma mudança de 180 graus de um momento para o outro. Passei a ser mais respeitado e admirado, como se fosse algo inalcançável, estilo Harry Potter. Até me chamam para dar palestras, sobretudo em escolas e a jovens de etnia cigana.
“Tiveram medo de me contratar”
A nossa comunidade tem um índice de abandono escolar muito alto, e isso tem de mudar. Temos de fazer um esforço para sermos mais cultos e integrados. Compreendo que são mais de 500 anos de perseguição, mas racismo e xenofobia vão existir sempre. Precisamos de abrir a mente e sair da nossa bolha, fazer a nossa parte para que esse ódio seja mitigado.
Não nego que temos problemas, mas também culpo o Estado. Aquelas ajudas diretas, muitas vezes, parecem traduzir a mensagem: “Vai ali para o teu bairro social, recebe a tua esmola e cala-te.” Isso não é bom, porque, de repente, aparecem pessoas a quererem criar uma espécie de guetos de Varsóvia, como aconteceu com os judeus. Chega-se a um ponto em que nem um ser humano inferior somos. Não somos sequer humanos.
Nunca me vitimizo, porque sou uma pessoa normal, e toda a gente, em algum momento, vai encontrar-se numa situação de desvantagem, a não ser que seja filho do Elon Musk. É importante termos essa mentalidade de seguir em frente. No entanto, ao terminar o meu curso de Gestão, comecei a ficar frustrado por não conseguir arranjar um estágio profissional, enquanto colegas meus receberam propostas ainda antes de obterem a licenciatura.
Fui a inúmeras entrevistas e enviei muitos currículos, mas ninguém queria dar-me uma oportunidade. Uma vez, disseram-me na cara que não me queriam por causa da minha etnia. Num banco, quando eu ia a sair da sala de reuniões, ouvi-os a falarem bem de mim até que disseram: “Mas é cigano.” Noutra empresa de Castelo Branco, uma colega de curso que lá trabalhava contou-me que tinham gostado de mim, mas tinham medo de me contratar porque eu teria de mexer em dinheiro.
Não me deixei ir abaixo. Havia a possibilidade de, apenas com mais um ano de estudos, concluir uma segunda licenciatura, em Gestão de Recursos Humanos. Como não tinha conseguido nada no mercado de trabalho, avancei. Foi nesta área que finalmente encontrei trabalho no Centro de Apoio Tecnológico Agroalimentar, em Castelo Branco. No próximo mês, termino o ano de estágio profissional e já estou com alguma ansiedade para saber se irei continuar.
Entretanto, escrevi um livro (Rumo, lançado em abril de 2023, pela Astrolábio Edições) e decidi prosseguir com os estudos. Estou a tirar o mestrado em Gestão de Empresas e, depois, quero fazer um doutoramento. O meu maior sonho é ser, um dia, professor universitário.
O livro surgiu de um encontro fortuito com uma ex-professora, numa das minhas viagens até à Biblioteca Municipal de Idanha-a-Nova. Ela sugeriu-me a ideia e, logo nesse dia, estava eu desempregado, atirei-me de corpo e alma ao desafio.
Os livros ensinaram-me que a minha vida não pertence a ninguém. Nietzsche inspirou-me a ser um espírito livre. Que diferença faz, na minha condição de cigano, eu estar a trabalhar num escritório ou numa feira? Nenhuma. Até é melhor, porque estou mais confortável, sejamos sinceros. Não quero ficar preso às normas. E, sim, sinto-me dono e senhor do meu destino, como diz o poema de William Henley.
Outro conceito interessante, que me ajudou muito, é o do estoicismo. A ideia de Epicteto de que a nossa vida está dividida entre os 50% que nós controlamos e os 50% que nós não controlamos. Não vale a pena preocuparmo-nos com os segundos, temos é de dar o nosso melhor em relação aos primeiros. Recentemente, entrei para a Ordem dos Economistas, e toda a família se alegrou. A vida vai-nos dando pancada, e a forma como nos levantamos é que define quem nós somos.
Depoimento recolhido por Rui Antunes