Na primeira pessoa: “Esta vergonha e esta culpa que se vão acumulando matam. Aos 20 anos, senti-me tão em baixo que tive o desejo de não andar cá”

Na primeira pessoa: “Esta vergonha e esta culpa que se vão acumulando matam. Aos 20 anos, senti-me tão em baixo que tive o desejo de não andar cá”

Sou volumosa, tenho a barriga para fora e as pernas largas, celulite, estrias e mostro-o com orgulho, mesmo sabendo que há questões que continuam cá e trabalho-as diariamente. Nem sempre foi assim. Na adolescência, sentia-me mal e em guerra por dentro. Embora fizesse parte dos “betos da Linha” e me achassem graça na escola, eu tinha um feitio disruptivo e problemas com a minha imagem, o que foi dramático. No círculo social de onde vim era esperado que nos encaixássemos num modelo. Eu sentia-me diferente, queria ser bailarina, cantora e trabalhar em artes performativas e irritava-me a ideia de ser “certinha” e de ter uma certa aparência.

Naquela altura era culturalmente aceitável ser muito magra, vestir determinado tipo de roupa e fazer dietas restritivas para perder peso: a maioria das mulheres importantes à minha volta fazia-o e eu, não sendo gorda nem magra, também. Quando perdia dez quilos, eram elogios rasgados à minha beleza. Voltava a engordar e o que é que sentia? Que era feia e nojenta, falhada e incapaz.

Ia a casa das amigas, todas vestiam o mesmo número e as calças, o top ou o biquíni só não me serviam a mim, e houve vezes em que cheguei a alargar ou a estragar os elásticos da roupa delas. Quanto mais tentava encaixar num padrão que não era o meu, pior. Esta vergonha e esta culpa que se vão acumulando matam. Aos 20 anos, senti-me tão em baixo que tive o desejo de não andar cá. Está estudado que os ciclos de dieta restritivos aumentam a probabilidade de desenvolver um distúrbio alimentar e eu ganhei o meu. Sei que é para a vida, apesar do acompanhamento clínico.

Bater no fundo

Durante a minha juventude diverti-me pouco porque trabalhava em part-time para ser independente e justificar que era alguém. Já tinha sido um escândalo optar pelo ensino técnico-profissional e chamavam-me burra por não estar no liceu, como toda a gente. Aos 21 anos, renunciei à faculdade e fui para Londres estudar fotografia analógica, mas, quando regressei, voltaram as dúvidas acerca do que era e queria ser, e acabei por cumprir a via “certinha” e concluir um mestrado integrado em Educação Básica.

O mal-estar persistia, a má relação com a comida e as dietas também. Vivi tudo isto sozinha, sem ninguém perceber. Qualquer pessoa adicta é muito boa na mentira e a minha, que não era verbal, tinha que ver com a multiplicação de refeições: almoçava com uma amiga, combinava novo almoço com outra e quando chegava a casa voltava a almoçar. Passava a vida neste ciclo destrutivo do excesso de peso, seguido de restrição, punição e mais dietas

O vazio e o mal-estar persistiam, a má relação com a comida e as dietas também. Vivi tudo isto sozinha, sem ninguém perceber. Qualquer pessoa adicta é muito boa na mentira e a minha, que não era verbal, tinha que ver com a multiplicação de refeições: almoçava com uma amiga, combinava novo almoço com outra e quando chegava a casa voltava a almoçar. Passava a vida neste ciclo destrutivo do excesso de peso, seguido de restrição, punição e mais dietas.

Deixei de ir à praia, aos jantares sociais e desculpava-me com o trabalho para não sair à noite. A ansiedade era muita, ficava dias na cama com dores de cabeça e de estômago e o corpo apitava por todos os lados, apesar de eu achar que a situação estava controlada. Um dia, apanhei um susto com pessoas próximas e acordei: ou fazia alguma coisa ou isto acabava mal. Escolhi viver.

O ponto de viragem

Quando comecei a namorar com o meu atual marido, aos 22 anos, e partilhei com ele os meus dramas – a vontade de não existir incluída –, ele aceitou-me, sem julgar nem condenar. Isso ajudou-me a pôr fim ao ciclo de punição e de castração a que estava habituada. Pela primeira vez, senti-me acolhida e digna de respeito e amor.

Durante a gravidez do primeiro filho, há nove anos, comecei a fazer o meu caminho de busca e criei um projeto digital, o Mu Blog [quase dez mil seguidores]. As duas gestações trouxeram-me alguma paz. Mentalmente, o meu raciocínio foi: “Agora posso.” Ao comer sem o peso das restrições de uma vida, a compulsão da comida deixou de estar presente. Ser mãe foi uma sova hormonal e mental que me levou às entranhas. Nas consultas médicas, senti-me alvo de bullying e body shaming. Diziam-me que tinha peso a mais, que não me mexia o suficiente, que devia comer menos. Foi preciso escavar até encontrar uma equipa que me acompanhasse como deve ser e só recentemente é que encontrei uma nutricionista especializada em distúrbios alimentares com uma abordagem completamente diferente da tradicional.

Há três anos, após ler bastante sobre estes temas, descobri que me culpava e castigava com base em crenças e zanguei-me. “Tenho de abrir esta goela, não aguento mais o peso de me sentir gorda e feia.” Num misto de coragem e de loucura, publiquei um longo texto no Instagram [33,6 mil seguidores] com uma fotografia minha em fato de banho. Apesar dos meus receios, recebi muitos desabafos de mulheres de todas as idades e feitios e, para meu espanto, percebi que não estava sozinha. Passei a ser uma voz do movimento Body Positivity, com a área da fotografia.

Alma de ativista

O meu processo não está acabado. Aos 30 anos aprendi a dar nome à ansiedade, a olhar a compulsão alimentar de frente e a lidar melhor com o excesso de peso. Às vezes, custa-me muito receber comentários bárbaros nas redes sociais, como “andas a promover a obesidade”. Na psicoterapia, encontrei-me com a criança interior profundamente magoada, perdida, triste e sofrida e conectei-me com ela, mas foi muito duro fazê-lo.

Na pandemia, privada dos meus rendimentos e com contas para pagar, lembrei-me dos problemas que tinha com a roupa, na adolescência, e lancei uma coleção de roupa inclusiva com o apoio do meu marido. Além de criar conteúdos, tornei-me modelo e colaboro com várias marcas, como aconteceu com a Dove, na campanha sobre body shaming.

Os conteúdos digitais e o meu livro Uma Autoestima Sem Tamanho [Contraponto Editores, 192 págs., €16,60] têm em mente as pessoas que sofrem – muitas ao ponto de desejarem o suicídio – e devolver-lhes, a partir da minha história, a ideia de que são bonitas, donas da sua beleza e de que podem celebrá-la.

Depoimento recolhido por Clara Soares

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