No palco de Atsumori, a coreógrafa tece uma tapeçaria onde o visível e o invisível se entrelaçam, convidando-nos a uma travessia pelos interstícios da existência humana. Inspirada na peça homónima Noh do século XV, este espetáculo transcende a narrativa para se inscrever no corpo, na luz e na memória, criando um território onde o humano e o fantasmagórico coexistem. A dança, aqui, não é apenas movimento; é invocação, um gesto que rasga o véu entre mundos e reivindica o direito de existir, de agir e de ser visto.
O espaço cénico de Atsumori é uma arena de contrastes. O chão e o teto luminosos, reminiscentes de salas de jogos com néons vibrantes, delineiam um campo onde o centro iluminado e a periferia sombria dialogam incessantemente. Os corpos, inicialmente contidos na periferia, emergem da penumbra como figuras translúcidas, quase etéreas, que parecem habitar um espaço intersticial entre a matéria e o espectro. O que se oculta à margem, nos recantos escurecidos, irrompe no centro com força renovada, onde a luz revela o que antes estava ausente ao olhar. Este movimento, meticulosamente coreografado, desafia o espectador a questionar: o que ignoramos quando só olhamos para o centro?
A periferia, muitas vezes invisível, torna-se um espaço ativo e político. Aqui, Catarina Miranda insinua que a marginalidade não é um lugar de ausência, mas de gestação — o invisível ganha forma, as sombras reclamam voz, e o que parecia secundário torna-se centro.
As figuras que habitam Atsumori são presenças fugidias, corpos que oscilam entre o sonho e a vigília, a memória e a realidade. Os intérpretes evocam a fragilidade da matéria humana, enquanto buscam, incessantemente, a sua potência máxima. Movem-se como espectros que dançam para se ancorar no mundo, recusando a invisibilidade.
Esta luta é profundamente física e simbólica. Os movimentos — inspirados pelo vudu, o folclore e as danças urbanas — criam um vocabulário híbrido que desafia a linearidade e reclama a singularidade do corpo. A pulsação rítmica dos gestos individuais, muitas vezes fragmentados, transforma-se numa expressão coletiva onde o grupo constrói o seu próprio discurso. Há aqui uma tensão entre a leveza fantasmática e a necessidade urgente de inscrição no presente. Catarina Miranda parece perguntar: de que forma nos materializamos no mundo? Como nos tornamos visíveis?
Atsumori respira através da memória. Os objetos em cena — isqueiros que lançam faíscas longas como sinais de vida, espelhos que refletem clarões de luz quase apotropaicos — são mais do que simples adereços: são vestígios de um passado que se repete, sinais de SOS de tempos de guerra e conflito. As memórias ancestrais, espectrais, mas persistentes, atravessam o espetáculo como ecos, como sombras que se recusam a desaparecer.
Os intérpretes tornam-se canais vivos desta comunicação com a ancestralidade, ora batendo palmas, ora emitindo sons vocais que ecoam no vazio. Há um ritual implícito nesta invocação, um desejo de conjurar o que foi esquecido, de abrir um portal entre o passado e o presente, entre o visível e o invisível.
No mundo atual, Atsumori reflete a condição social de um tempo marcado pelo conflito, pela opacidade e pela urgência de transformação. Os corpos que emergem da sombra para a luz encarnam o gesto político de sair da invisibilidade — de recusar a transparência fantasmática e tornarem-se agentes de mudança. A coreografia, neste sentido, não é apenas estética, mas ética: desafia-nos a abandonar o papel de vítimas, a agir sobre a realidade, a construir o futuro.
O espetáculo torna-se, assim, uma metáfora da resistência e da resiliência humanas. Cada gesto é uma tentativa de transformação, um ato que afasta as forças obscuras, como um ritual apotropaico que reivindica a vida face à sombra. Há, aqui, uma força silenciosa, mas profundamente subversiva, que interpela o espectador e perdura para além do espetáculo: como é que nos inscrevemos no mundo? Que espaço ocupamos? Qual o nosso papel singular? Qual a perspetiva que escolhemos ver? A sombra ou a luz?