No belíssimo jardim da casa Pauline Viardot-García, onde hoje se situa o Centro Europeu da Música (CEM), um grupo de jovens cantores de ópera, das mais diversas nacionalidades, junta-se a um canto e ensaia a gravação de um tema.
Desta vez o que cantam não é uma ária de Rossini ou Mozart, mas uns tão vulgares Happy Birthday to You. O aniversariante é, nada mais nada menos, do que Georges Bizet, o autor de Carmen, cujo aniversário coincide com o dia mundial da ópera (25 de outubro).
Bizet, se fosse vivo, poderia efetivamente surgir ali, a subir a colina, já que a sua fica junto ao rio Sena, a 10 metros dali, e ele próprio era um dos habituais frequentadores da casa de Pauline.
Naquela casa do séc. XIX, com um jardim magnífico, funciona agora o Centro Europeu da Música, dirigido pelo ex-cantor de ópera português Jorge Chaminé. Mas já lá vamos, Interessa-nos antes falar destes jovens e talentosos cantores, vozes do presente e do futuro da ópera.
Todos eles aproveitaram a I Edição do Cascais Ópera para mostrar o seu talento e todos eles estão em algumas das mais conceituadas companhias de ópera mundiais, sendo que alguns conseguiram o seu contrato através da prestação no concurso português. Para Adriano Jordão, um dos diretores do Cascais Ópera, o sucesso foi tão grande quanto inesperado, ao ponto de afirmar: “Se soubesse que ia correr tão bem, nunca me teria metido disto”.
Os números falam por si. O concurso sem historial teve mais de mais de duzentas candidaturas de 39 países na primeira edição. Agora o objetivo é expandir a ideia, com novos parceiros, incluindo CEM, permitindo um crescimento exponencial. Daí a ação de divulgação feita em Paris, com recitais na Embaixada de Portugal e no CEM, que, na verdade, são feitas a pensar também nas redes sociais, que é o meio privilegiado para divulgar a informação entre os jovens.
Em conjunto ou em separado sobem ao palco cinco cantores: duas portuguesas, dois ucranianos e um coreano. A estes acrescenta-se um jovem pianista italiano – ironicamente aquele que é nativo de uma das línguas da ópera… não canta.
Cada um tem a sua história, mas todos eles têm em comum um início de carreira auspicioso que obriga à saída da sua terra natal.
As cantoras portuguesas
Um dos elementos surpreendentes da primeira edição é a quantidade e a qualidade dos participantes portugueses, tendo mesmo Sílvia Sequeira, 1º Prémio “Teresa Berganza” para voz feminina.
“A entrevista pode ser feita com o sotaque do Porto, é que se não puder também não há alternativa”, diz, bem disposta, a cantora, que é a primeira a subir ao palco interpretando uma ária de Wagner. E depois lá nos conta a sua história.
Foi nascida e criada em Matosinhos, habituada a bom peixe, e às conversas das varinas na lota. O pai é músico. E ela seguiu-lhe as pisadas. Primeiro começou por tocar trompa no Conservatório do Porto, mas depois descobriu que o que realmente gostava de fazer era cantar.
Fez a licenciatura na ESMAE, mestrado em Maastricht (onde atualmente vive). “Mal entrei na Holanda fiz várias audições e tenho tido muitos convites”, diz ao JL. Foi desafiada a inscrever-se no Cascais Opera pela diretora Alexandra. “Quando vi todos aqueles nomes nunca pensei que poderia ganhar o primeiro prémio”. Mas ganhou. “Houve muita gente a ouvir-me, as pessoas vão-me conhecendo, até porque algumas me viram na televisão”.
Teresa Sales Rebordão não ganhou o prémio principal, mas ainda assim o Cascais Opera trouxe-lhe oportunidades. Começou por cantar no coro infantil da Universidade de Lisboa (a mãe cantava no coro de câmara), depois entrou para o Instituto Gregoriano.
Fez o secundário em Ciências, entrou em biologia na Universidade de Lisboa, mantendo-se sempre a estudar música. A meio do curso de biologia, teve a primeira experiência operática no Gregoriano. “Fez um clique. Apercebi-me de que a música tinha demasiada importância para mim e teria que ser a minha profissão”.
Um dos elementos surpreendentes da primeira edição é a quantidade e a qualidade dos participantes portugueses, tendo mesmo Sílvia Sequeira, 1º Prémio “Teresa Berganza” para voz feminina
Fez provas para estudar em Colónia, onde acabou por tirar a licenciatura e o mestrado. O Cascais Ópera foi o seu primeiro concurso. Ganhou o prémio contrato com o Festival de Marvão mas, mais importante do que isso, fez o contacto que lhe permitiu fazer uma audição para a Ópera de Viena, que atualmente integra. Nos recitais cantou Joly Braga Santos, Hoffenbach, Johann Strauss II e Franz Léhar.
Às duas perguntámos o que se passa com o nosso país, para que o sucesso implique sair de portas – na música erudita é assim há séculos. Silva é muito direta, diz: “Existe uma negligência para com os artistas. Uma ideia de leviandade sobre o nosso trabalho, como se fosse um hobby. Lá fora não é assim”.
Teresa explica: “Tendo em conta que há apenas uma casa de ópera no país, as oportunidades são muito poucas. Tive que sair de Portugal para a Alemanha, país que tem mais casas de ópera do mundo, mais que 50”.
Anna Erokhina é ucraniana, mas vive em Helsínquia há cinco anos. Venceu o terceiro prémio do Cascais Opera. Quando pedimos para conversar com ela, pergunta-nos se pode gravar o início da entrevista para o seu Instagram pessoal.
É sintomático da postura geracional, que tem a consciência que a autopromoção é um recurso necessário. Começou por cantar num coro, mas já na altura o que queria era ser solista. Começou por cantar música pop e integrar uma banda de jazz, mas quando descobriu a ópera não quis outra coisa.
“O mundo da ópera era algo completamente novo e fascinante. Decidi que era aquilo que queria fazer na vida. Adoro a ópera e não trocaria por nada”. Diz que ainda canta outras músicas com os amigos em karaokes e, a nosso pedido, quando lhe perguntámos qual era o seu standard favorito, cantou com uma voz cristalina um standard de Charlie Parker. Nos recitais cantou Bizet e Pietro Mascagni.
Haesu Kim acaba por ser o representante da comitiva sul-coreana. A ópera é um autêntico fenómeno na Coreia. Haesu é um dos três finalistas do Cascais Opera sendo que o seu colega Hae Kang venceu o prémio principal do festival para a voz masculina.
Haesu explica: “Nós na Coreia gostamos muito de cantar. Estamos a cantar o tempo inteiro, por isso é que o karaoke é tão popular”. Começou por cantar temas tradicionais coreanos e depois aproximou-se da ópera e esse tem sido o seu percurso a partir de então.
“Precisamos de fazer marketing, senão ninguém sabe nada sobre nós. Por isso, é que concorri ao Cascais Opera e agora estou aqui”. “Podemos praticar muito em casa, mas o mais importante é aprender no palco, que é o que acontece neste festival.” Canta com incrível graciosidade. No recital cantou Bizet e Puccini.
É absolutamente espantoso assistir a estas cinco vozes de realidades tão diferentes a banquetear-nos com atuações que, além da qualidade da voz em si, são tão expressivamente ricas. Aliás, o ambiente descontraído entre eles é notável. Nos intervalos, em vez de ensaiaram as áreas, põem-se a cantar, por exemplo, clássicos de Elvis Presley ou do musical Air. A versatilidade não se perde.
Como tudo começou
O Cascais Opera partiu de uma ideia do barítono russo Sergei Leiferkus a figura da ópera mundial, conhecido pelo seu papel de Iago, contracenando com Plácido Domingo, em Otelo. O barítono viveu 23 anos em Londres, mas, como explicou ao JL, estava cansado do frio, e procurou um lugar mais quente.
Depois de algumas investidas no sul de Espanha, encontrou o seu lugar ao sol em Cascais, vila onde ainda hoje vive. Ou melhor, como explica, “se me perguntarem onde eu moro, eu digo que é nos aeroportos”. Continua no ativo e é um cantor muito procurado, com uma agenda sempre cheia, ainda com atuações nos dois mundos: tanto viaja para as grandes óperas do ocidente como faz digressões na Rússia, aliás, mantém também uma casa em São Petersburgo.
Quando chegou a Portugal, há 17 anos, o famoso cantor deparou-se com uma realidade que lhe pareceu estranha: a enorme carência de programação de música erudita. Falou então com Adriano Jordão, que entretanto conhecera, e sugeriu a criação de um festival de ópera, de revelação de novos talentos, ao exemplo de um em que tinha estado em Helsínquia.
Os dois tiveram reuniões ao mais alto nível e foram trabalhando na ideia até conseguir os fundos necessários para o arranque. Quando finalmente estava tudo preparado, espoletou a Guerra da Ucrânia e a restrição aos dinheiros vindos da Rússia puseram em causa a viabilidade económica. Mais dois anos de esforço até que, em maio de 2024, foi finalmente possível fazer a primeira edição do Cascais Opera, que decorreu em Cascais em Lisboa, com a final no São Carlos.
Sergei Leiferkus tem um percurso singular. Começou a cantar por insistência da professora de inglês da escola, que fazia aulas dinâmicas com canções tradicionais e inglesas e russas. Foi assim que descobriu que tinha uma voz. A partir daí foi uma questão de estúdio, esforço e trabalho.
Um dos motivos de sucesso do Cascais Opera é a escolha do júri. Os jurados são figuras maiores e reconhecidas da ópera mundial, diretores de companhia, ilustres cantores. Tal permite que o festival sirva de audição em grande escala. Muitos dos concorrentes de 2024, mesmo aqueles que não ganharam prémios, conseguiram contratos com importantes companhias.
Leiferkus, que, além de diretor artístico, é o presidente do júri, explica o que os jurados observam: “Primeiro que tudo é preciso ter uma voz. Depois é preciso ter uma capacidade de interpretação artística e finalmente carisma”, , lembrando que a Ópera é uma arte performativa, parente do teatro. Sintetiza: “Olhamos para estes cantores na perspectiva de ver que futuro poderão ter”. E no caso dos premiados e daqueles que acompanharam a comitiva a Paris, adivinha-se um futuro auspicioso.
Previsões para o futuro
O sucesso da primeira edição do festival foi acima das expectativas, mas agora a ambição redobrou. É isso que nos explica Alexandria Maurício, que com uma equipa muito pequena, assume a direção do evento.
É expetável um grande crescimento, pois há testemunhas do sucesso que teve a primeira edição. E isso pode fazer com que a fama do recém criada o festival chegue a ainda mais gente. Isto, claro, com o duplo objetivo de aumentar o número de concorrentes e promover a ópera em Portugal. Para tal, este ano também contam com novos parceiros.
Um dos mais importantes é o Centro Europeu da Música, cuja sede se situa em Bougival, a oeste de Paris. O centro é dirigido pelo português Jorge Chaminé, antigo cantor de ópera, que chegou a contracenar com Sergei, e grande entusiasta da música erudita. O espaço onde o centro se situa foi recuperado graças a um grande esforço feito pelo próprio. Chaminé é um exímio contador de histórias, com uma vasta cultura
A sede da CEM era a morada de Pauline Viardot-García, uma das mais carismáticas cantoras de ópera de todos os tempos. Teve aulas de piano com Liszt (aliás um dos pianos da casa era do próprio Liszt), mas acabou por enveredar pelo canto, após uma tragédia familiar.
A casa era frequentada por figuras ilustres. Dentro do mesmo terreno, um pouco mais acima, fica uma outra casa, num estilo mais próximo do estilo chalé. É a casa-museu de Ivan Turguêniev, que terá sido seu amante. O escritor russo viveu e morreu ali e a sua casa foi recuperada há décadas, servindo-se também de um fundo da então União Soviética.
Mais abaixo, na margem do Sena, fica uma casa mais discreta que pertenceria a Georges Bizet. Jorge Chaminé conta-nos muitas histórias, incluindo a altura em que o compositor de Carmen inventara um escorrega que saía de uma das janelas do andar superior diretamente para o rio.
Foi ali que nasceu Carmen. Na sala de baixo está o piano em que o compositor francês escreveu a ópera, enquanto, no andar de cinema, Henri Meilhac escrevia o libreto (que depois foi revisto e em parte rescrito pelo próprio Bizet e por Ludovic Halévy). Como se sabe, a estreia em Paris, em 1875 foi um fiasco e Bizet não teve reconhecimento em vida.
Mas o tempo havia de lhe dar razão. Carmen é sem dúvida uma das mais populares óperas de hoje em dia. Aliás, tornou-se mais conhecida do que o próprio Bizet.
Difícil de explicar é o estado de degradação a que se deixou chegar a casa Bizet. Está fechada ao público, a cair de podre, necessitando de obras urgentes, mas ainda não está aprovado qualquer plano de transformação em casa museu. Jorge Chaminé tem o plano ambicioso de fazer uma passagem subterrânea, juntando a Casa de Bizet à Pauline, fazendo um grande polo cultural dedicada à música operática. São largos milhões e faltam mecenas.
Para já, Jorge Chaminé tem em mãos um outro grande projeto. O CEM vai crescer, ganhando espaço para workshops e residências artísticas, criando uma rede por toda a Europa, que inclui espaços em Portugal.
Isto e o Cascais Opera, que tenta criar em Portugal um pólo de revelação de talentos, mesmo que seja contracorrente. Claro que é impossível concorrer com o investimento alemão ou austríaco, em que todas as cidades médias e grandes têm pelo menos uma companhia de ópera.
Mas, com um pouco de investimento público, Portugal tem as condições certas para crescer. Para Sergei a receita é simples: “A formação é essencial. É preciso o acompanhamento dos pais e existir uma escola de música perto de casa.” Um dia os governos vão perceber que os nossos grandes cantores não estão aqui.