O original das Flores de Música, de Manuel Rodrigues Coelho, soma 400 anos e mais de 500 páginas de composições para harpa e instrumentos de tecla, como órgão, virginal, cravo e clavicórdio. É a mais antiga partitura instrumental impressa em Portugal e uma das mais extensas obras musicais publicadas no século XVII.
Uma nova edição impressa, resultado de um longo trabalho de investigação do musicólogo e organista João Vaz, com os organistas Sérgio Silva e André Ferreira, surgiu em três volumes, entre 2019 e 2020, pela Ut Orpheus, de Bolonha, sob os auspícios da ECHOM – European Cities of Historical Organs.
De seguida, impôs-se a gravação – a primeira gravação integral da obra do compositor, que a britânica Resonus/Inventa Records assumiu, e que agora se encontra em curso.
A investigação traz resultados, bons resultados. Antes de mais, preenche o vazio deixado pela anterior edição completa, feita por Macário Santiago Kastner, originalmente publicada há mais de 60 anos (1959-1961), pela Fundação Calouste Gulbenkian, e há muito esgotada. Depois, reflete o conhecimento adquirido ao longo das últimas décadas, privilegiando uma abordagem prática, no contexto histórico – a nova edição impressa inclui mesmo a Arte de Tanger, de Gonçalo de Baena –, e a utilização inédita dos instrumentos indicados na partitura original. As gravações beneficiam, portanto, de todo o trabalho de investigação. Refletem a abordagem global, contextualizada, informada.
Os dois primeiros álbuns já estão disponíveis. Reúnem cem peças para órgão, interpretadas por Sérgio Silva e André Ferreira, incluindo alguns dos exemplos mais conseguidos da arte de Manuel Rodrigues Coelho.
Outros quatro álbuns se seguirão, mobilizando os cravistas Miguel Jalôto, Ana Mafalda Castro e Marco Brescia, a harpista Maria Bayley e o próprio João Vaz, acompanhados por cantores e ensembles instrumentais de época, conforme a obra o imponha, e fazendo uso de instrumentos históricos portugueses, como o cravo Antunes, verdadeiro tesouro nacional, e os órgãos de Mafra e de São Vicente de Fora.
Flores de Música são um testemunho precioso de Manuel Rodrigues Coelho, que o colocam entre os mestres do seu tempo. São um testemunho direto da sua vida e da sua conceção de música, das suas influências e do que de único nele se encontra.
Tiveram primeira impressão em Lisboa, em 1620, e constituem uma das mais belas e elaboradas coleções de música sacra e profana, entre as publicadas na Península Ibérica nas primeiras décadas do século XVII.
Reúnem 24 tentos contrastantes entre si, num estilo fluente e dinâmico, que revelam destreza e uma absoluta mestria do contraponto, quatro Pangue Lingua em cantochão, quatro Ave Maris Stella que se desdobram em vozes sobre o cantus firmus, diversos jogos de Versos litúrgicos, Kyrios, Benedictos e Magnificats, e ainda quatro Susanas, demonstração da arte de glosar em instrumento de tecla, tomando como ponto de partida Susanne un Jour, de Orlando di Lassus.
O conjunto, em termos de técnicas e práticas, está perfeitamente inserido no estilo emergente da transição do Renascimento para o Barroco. A qualidade artística e estética é imensa, numa síntese rara da tradição organística portuguesa com as tradições de origem flamenga e italiana, revelando uma expressão muito própria, a par das tendências europeias da época e de mestres como Correa de Arauxo, Girolamo Frescobaldi e Jan Sweelinck.
Manuel Rodrigues Coelho nasceu em Elvas, por volta de 1555 e morreu em Lisboa em 1635. Foi organista na cidade natal e depois em Badajoz, antes de assumir o mesmo cargo na Sé de Lisboa e, mais tarde, na Capela Real.
O primeiro álbum da integral foi ao ponto de partida. Gravado na catedral de Elvas e no seu órgão do século XVIII, construído por Pascoal Caetano Oldovino, conta com o organista Sérgio Silva, a soprano Mariana Moldão e a meio-soprano Maria de Fátima Nunes.
A investigação dá bons frutos, quer na interpretação, quer na sequência escolhida, que abre desde logo com o Terceiro Tento do 8.º tom, o último dos 24 impressos, seguindo-se diferentes Versos, Kyrie e Magnificat mais um Pange Lingua.
O segundo álbum, com o organista André Ferreira e o agrupamento Ars Lusitana, de Maria Bayley, dedicado à interpretação histórica de música antiga portuguesa, foi gravado no órgão de Bento Fontanes da Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, em Mafra. Abre com um pungente Ave Maris Stella, que conjuga com Kyrie, Magnificats e Versos, culminando num extraordinário Segundo Tento do 6.º tom.
Em ambos os casos a gravação é primorosa (Jorge Simões da Hora e Tiago Manuel da Hora) e as notas da edição em disco, assinadas pelos respetivos intérpretes, são excelentes apoios para a audição e a compreensão da obra, no seu lugar, no seu tempo e na atualidade que manteve.
Ao longo dos anos, várias gravações abordaram o universo de Manuel Rodrigues Coelho. Uma das mais extensas e exclusivas, até agora, deve-se a Rui Paiva, com o contratenor Mário Marques e a Schola Cantorum Lusitana (PortugalSom, 1991). Antes dele, houve Antoine Sibertin-Blanc, numa gravação em vinil/LP do final da década de 1960, na altura editada pela Colúmbia/Valentim de Carvalho, em Portugal, e pela conceituada Erato (1968), em França.
Depois, houve sobretudo coletâneas de compositores da época em que a música de Rodrigues Coelho se impunha: a coleção Portugaliae Monumenta Orgânica – Órgãos Históricos de Portugal, de Rui Paiva e João Vaz (Polygram, 1992); o álbum de Bernard Brauchli, no Órgão da Sé de Évora, da coleção The Iberian Organ (Titanic Records, 1986) e a sua Música Portuguesa para Teclado dos Séculos XVI e XVII, dedicada ao cravo (Dargil, 2000); a Música Portuguesa para Tecla – Séculos XVI-XVII, de Ana Mafalda Castro (EMI Classics, 1998); a derradeira atuação de Joaquim Simões da Hora, no órgão de São Vicente de Fora, em 1994, um recital gravado pela Antena 2 e editado oito anos mais tarde (In Concert, Portugaler, 2002); e a série Organa Vocis: Órgãos Históricos, de Rui Paiva (Capella, 2005).
Passados 400 anos sobre a edição original da obra de Manuel Rodrigues Coelho, mais de meio século após o seu resgate, impunha-se o regresso ao legado, com nova investigação e, finalmente, a gravação de todas as Flores de Música do compositor. Elas aí estão.