Começou por ser uma coleção de música para cravo, uma espécie de ‘catálogo’ de composições, em todas as tonalidades possíveis, numa sucessão prodigiosa de Prelúdios e Fugas, que percorriam os 24 tons da escala (os 12 tons maiores e os 12 tons menores), e acabou por se revelar um dos muitos e fascinantes monumentos da obra de Johann Sebastian Bach e da música de tradição europeia. “O Cravo Bem Temperado” surgiu em 1722, quando Bach se encontrava ao serviço da corte de Köthen – pouco antes de assumir o posto de Leipzig –, “para proveito e uso dos jovens músicos com vontade de aprender, e para entretenimento dos mais experientes”, segundo a descrição do próprio compositor. Duas décadas mais tarde, Bach regressou a essa sua ‘coleção de música’, dando origem a um segundo livro, num puro desafio da perfeição do primeiro, sempre com a sua essência e a perspetiva da contemporaneidade que o seu caminho definia. O Livro II testemunha assim o seu próprio tempo, uma fase mais tardia da expressão de Bach, e uma síntese mais sofisticada do Barroco tardio, que o coloca igualmente no centro da produção do compositor.
É exatamente este segundo livro – Livro II – que o cravista e pianista Andreas Staier escolhe para iniciar a gravação integral de “O Cravo Bem Temperado”. A edição em disco surge na sequência de anos da apresentação em público, e do trabalho em torno da génese e do contexto das duas ‘coleções de música’, tendo em conta a época, as fontes, influências e a síntese única e magistral estabelecida pelo compositor. Ao vivo, Staier abria caminho com John Bull, Johann Jakob Froberger, François Couperin, António Vivaldi (transcrito por Bach) e Wilhelm Friedemann Bach – indiscutivelmente um dos jovens que mais proveito tirou da obra –, e, a cada etapa, desaguava no rigor dos prelúdios e na liberdade das respetivas fugas que se seguiam. Na gravação, Staier demonstra a sumptuosidade do Mestre de Leipzig, a complexidade melódica e harmónica que cada uma das “peças do catálogo” patenteia em si mesma.
No percurso do cravista, mais de quatro décadas foram percorridas até estes dois “grandes livros” de Bach. Houve todo o Barroco e toda a obra para instrumentos de tecla do compositor, dos concertos às “Variações Goldberg”, e houve também marcantes interpretações de Carlos Seixas, Domenico Scarlatti, Mozart, Haydn, Beethoven, Schubert e Schumann, Mendelssohn, Brahms, uma perspetiva ampla sobre mais de três séculos de música para instrumentos de tecka. Que “O Cravo Bem Temperado” surja agora, faz todo o sentido. É como ir ao lugar de origem, de tudo o que veio depois. Staier abre as portas a um universo sonoro sem precedentes, que se revela em profundidade e saber.
“O Cravo Bem Temperado” não se trata exatamente de um ciclo, como o pianista fez questão de afirmar nas apresentações ao vivo. É, acima de tudo, o que sempre foi – uma ‘coleção de música’ levada às últimas consequências, de uma riqueza sem fim.
O segundo livro surge no contexto de “uma rutura artística decisiva”, como escreve o musicólogo Peter Wollny, no texto que acompanha a edição em disco. São os anos que se sucedem à “Oratória de Natal”, que conduzem ao esplendor das mais tardias Missa em Si Menor e “Oferenda Musical”, os anos em que Bach regressa a obras anteriores, como os grandes corais para órgão de Weimar e a cantatas que hão de sustentar os conhecidos “Corais Schubler”, os anos em que revisita a “Paixão Segundo São Mateus” e a “Paixão Segundo São João”, em que compõe tesouros como as chamadas Missas Breves, e em que mantém, sem descanso, a pesquisa sobre o seu próprio pensamento musical, na base de obras como a “Arte da Fuga”, levada até ao final da vida, ou o segundo livro de “O Cravo Bem Temperado”, concluído em 1744.
O díptico Prelúdio-Fuga, em que assentam os dois livros, parece uma associação evidente, mas nem em 1722 nem em 1744 o contraste entre o rigor formal do primeiro e a liberdade da segunda se perfilavam numa associação evidente de causa-efeito. Para mais, Bach concebeu peças de caráter subtil, obras-primas do contraponto, plenas de vida, “refinadas até ao pormenor, que desenvolvem as mais difíceis exigências da escrita polifónica com aparente facilidade (…), dando nova vida ao velho ideal da fuga”, como escreve Peter Wollony.
Com “O Cravo Bem Temperado”, “Bach pode ser considerado o primeiro compositor a atravessar o universo tonal em toda a sua diversidade e a apresentá-lo em obras-primas únicas”. Mas o valor artístico único destes dois livros “reside não só no desenvolvimento exaustivo do sistema tonal, mas acima de tudo na engenhosa ideia de combinar a grande riqueza do espetro harmónico com uma variedade semelhante de estilos musicais e técnicas composicionais”, insiste Wollny.
No segundo livro, Bach impõe desafios imensos, através dos quais novos modelos são já percetíveis, “na forma e no gesto”, como a emergente forma sonata, que encontraria plenitude no rigor clássico. “O que é único nesta segunda grande coleção de prelúdios e fugas é a variedade estilística verdadeiramente espantosa, que ultrapassa a já admirável abundância da primeira”, lê-se no texto que acompanha o novo álbum de Staier. Para a coleção de 1744, portanto, mantêm-se exatas as palavras de Johann Nikolaus Forkel, biógrafo de Bach: “Do princípio ao fim, não contém nada mais além de obras-primas”.
Para a interpretação, que exige brilho, cor e subtileza, Andreas Staier escolheu uma cópia de um cravo Hieronymus Albrecht Hass, de 1734, construído em Paris, em 2004. O instrumento é riquíssimo e a interpretação plena de virtuosismo e profundidade, honrando a obra. E de novo se cumprem as palavras de Goethe, depois de ter ouvido o segundo livro em órgão, em Bad Berka: “É como se a harmonia eterna conversasse consigo mesma, pouco antes da criação do mundo”, e ela assim bastasse, deixando de haver necessidade de qualquer outro sentido. J Maria Augusta Gonçalves
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Andreas Staier, cravo
JS Bach, O Cravo Bem temperado – Livro II
Harmonia Mundi