Ainda não é desta que lança um álbum de originais propriamente dito. Mas aquele que é um dos mais importantes cantautores da nossa história, traz-nos um duplo disco cheio de temas desconhecidos do grande público. Inéditos reúne temas perdidos ao longo da carreira (de 1967 a 1999), entre lados B de singles, cassetes, bobines e bandas sonoras de filmes. O JL falou com o músico português sobre canções e o estado do mundo
Diz não se sentir velho ou incapacitado, simplesmente com falta de assunto. Esse é o motivo pelo qual José Mário Branco não lança qualquer álbum de originais há 14 anos (desde Resistir é Vencer) e também tem abdicado de subir aos palco, apesar das muitas solicitações. Em 2017, iniciaram-se as celebrações de 50 anos de carreira – data das sessões de gravação de Seis Cantigas de Amigo -, com a reedição remasterizada da discografia completa. A efeméride só terminará em 2019 com uma nova coletânea. Em 2018, esta surpreendente recolha de material inédito ou raro que mostra a heterogeneidade de um percurso, com vários momentos surpreendentes, como os temas da banda sonora de Agosto, de Jorge Silva Melo, que inclui uma canção interpretada com os EnaPá 2000.
Nascido no Porto, em 1942, José Mário Branco desde cedo se pautou por uma atitude política de contestação ao regime salazarista e, muito concretamente, à Guerra Colonial. Para não ter de ir para a guerra, para Angola, contra as indicações do Partido Comunista, a que pertencia, exilou-se em França. Ali teve intervenção política, ligada à extrema-esquerda, e integrou-se em movimentos artísticos de música e teatro, tendo como principal causa, naturalmente, a libertação de Portugal. Viveu a euforia do Maio de 1968. Antes da revolução de Abril ainda lançou os discos Seis Cantigas de Amigo, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades e Margem de Certa Maneira. E depois muitos outros, mantendo sempre a acutilância política, como Ser Solidário, o máxi FMI, A Noite ou Correspondências. O seu último disco de originais Resistir é Vencer saiu em 2004. Mas depois disso tem trabalhado em importantes projetos, incluindo o espetáculo Três Cantos (com Fausto e Sérgio Godinho) e inúmeras produções e direções musicais de discos de outros, com destaque para todos os álbuns de estúdio de Camané, em que deixou uma forte marca na sua sonoridade e algumas composições. Atualmente está a trabalhar com a fadista Katia Guerreiro.
Jornal de Letras: Como foi possível que estas canções, algumas magníficas, terem ficado de fora dos seus álbuns de originais?
José Mário Branco: Foi acontecendo por motivos diferentes. Quando se deu a passagem para o CD, em meados dos anos 90, foi feito um trabalho de digitalização e de limpeza, pelo José Fortes, para a EMI. Só que algumas coisas ficaram de fora. Pouco depois disso houve um projeto, com o David Ferreira, de fazer algo assim, recolhendo material pendurado no vinil ou mesmo escondido noutros suportes digitais, como bobines ou cassetes. Também há músicas feitas para dentro da ação de filmes e que nunca foram conhecidas do público integralmente. E até uma obra instrumental que só foi interpretada uma vez em público, há 30 anos. Esse é o único caso que optámos por regravar, porque os originais estavam em muito mau estado.
O material agora editado situa-se entre 1967 e 1999. Mas certamente há inéditos mais recentes, até mesmo das sessões do seu último álbum Resistir é Vencer (2004)…
Tivemos que fazer uma escolha drástica. Recolhi duas horas e meia de música. Depois, foi-se reduzindo o espetro até caber num duplo CD. Em 1967 não saiu nenhum disco meu, é a data de uma maqueta que foi enviada para o Lopes-Graça, com o que viria a ser o disco das Seis Cantigas de Amigo. Tinha feito sete cantigas, mas apenas seis foram editadas. Abri esta coletânea com a sétima, uma gravação caseira, mas suficientemente bem interpretada para que se possa dar a conhecer.
Porque motivo essa sétima cantiga não entrou no disco original?
Teve que ver com a capacidade física do EP. Era um EP de 33 rpm, o máximo que podia levar era três faixas por lado. O Michel Giacometti e o Lopes-Graça escolheram as outras seis. Apesar disso, esta foi a que mais cantei pela Europa fora.
Como é voltar a ouvir-se em tempos tão remotos?
Esquisito. Uma espécie de viagem pelo passado que tem como fronteira final a digitalização.O critério de alinhamento é cronológico, o que faz disto uma espécie de ‘filme’ desses 30 e tal anos.
A escolha é muito heterogénea. Chega mesmo a cantar com os EnaPá 2000…
Uma prova de polivalência. Gravei de propósito para o Agosto, de Jorge Silva Melo. A encomenda foram cinco êxitos pop de um verão nos anos 60. São músicas ouvidas de passagem dentro das cenas. Foram feitos ‘à maneira’ de artistas que eram então populares, com instrumentos e pedaleiras da época. Essa capacidade de cantar ao estilo de outros artistas tem a ver com a minha experiência de rádio, o meu primeiro emprego remunerado foi nos Emissores do Norte Reunidos. Tive contacto com muita música, não só de origem anglossaxónica, mas também francesa, italiana…
Há temas que têm um contexto histórico muito concreto, como aqueles que se referem à Guerra Colonial. Apenas uma curiosidade histórica ou pode fazer-se uma leitura para os nossos tempos?
Hoje em dia o colonialismo é globalizado, mais difuso e subliminar. Na altura referia–se a uma decisão muito grave e presente da minha geração. Essa recusa em combater na guerra colonial, contra as diretivas do Partido Comunista (PCP), a que na altura estava ligado, era algo muito concreto e forte. Tínhamos a consciência de que o fim da guerra seria o fim da ditadura. E andámos a cantar isso pela Europa, de mão dada com o MPLA e a Frelimo.
Com o exílio, em França, ganhou uma visão global?
Uma visão mais informada. Aprendi muito, também com aquela primeira revolta maoísta dentro do PCP, pouco depois do conflito cino-soviético. É um percurso de dissidências.
No Maio de 1968, que viveu em Paris, achou-se próximo de cumprir um sonho global?
Tenho uma visão mais festiva sobre a coisa. Foi uma festa linda, um grito, um sobressalto. Não havia um projeto político. Foi um levantamento libertário. Teve a importância que teve por que coincidiu com uma adesão maciça da classe trabalhadora: sete milhões de operários em greve, com ocupação das empresas (não foi como a maior parte das greves de agora que servem para ficar em casa a ver a novela). Daí a vivência que tive. Comecei a estar integrado em grupos móveis de artistas que iam aos sítios ocupados, cantar, declamar e fazer sketches, com a dupla função de entreter e dar força moral para que continuassem.
Lembra-se de algum episódio em particular?
Um dia ia a subir a Boulevard Saint Michel e vi um aglomerado de pessoas a discutir. Encostei o carro e percebi que eram pessoas completamente diferentes a discutir uns com os outros, desde estudantes ao operário com fato de macaco, ao senhor de gravata e à dona de casa com as compras. Perguntei-lhes o que se estava a passar. Disseram-me: “Estamos a discutir a felicidade.” Isso foi o Maio de 1968. A França ficou parada, nada funcionava, apenas as pessoas.
Mas tudo isso teve banda sonora… Da qual o José Mário fez parte…
A minha vida mudou. Até então vivíamos muito fechados na comunidade portuguesa. Não só por nossa culpa, mas devido às características próprias da sociedade parisiense. O Maio de 68 quebrou esses muros todos.
Passei a ter amigos franceses e de outras nacionalidades, fundámos uma cooperativa cultural, com gente de todo o lado. Foi lindíssimo.
Depois houve uma desilusão?
Em junho, há o acordo dos sindicatos com o Pompidou, com 10 % de aumento global em todos os salários da França. E em setembro o custo de vida subiu 12 %… Ou seja, nem isso ficou…
Falou há pouco de dissidências, mas o seu percurso não terá sido feito também de ilusões e desilusões?
Não lhe chamaria assim O que está subjacente a uma dissidência é a existência de valores. Embora não tenha qualquer vocação política, fui pertencendo a coisas porque me pareceu que realizaria aí certos valores que sigo desde muito novo -aqueles mais gerais, como o amor, a justiça, a liberdade. Quando se vai para uma iniciativa do campo social ou político em que se pensa que esses valores são realizáveis, exequíveis, quem não é muito competente na matéria política no sentido estrito pode-se enganar, pode ver uma presunção que não foi realizada, mas não é uma desilusão. Porque não havia qualquer ilusão, aquele era mesmo o sítio dos valores naquele momento. Quando saí do BE (Bloco de Esquerda), que ajudei a fundar, disselhes: “Eu nunca saí de partido nenhum, foram os partidos que saíram de mim, porque mantenho-me igual, com os mesmos valores”.
E enquanto artista…
…Para um artista a essencialidade das coisas está na realização da obra. Nunca fiz um plano organizado. Tínhamos paixões, não projetos, nunca um olhar frio e calculado sobre a criação . Havia o tripé: a criação artística é uma estética que é uma técnica que é uma ética. Nunca são os artistas que mostram o caminho, eles falam do caminho.
Mas a questão da ética não se tem vindo a esbater nos últimos tempos?
Aprendi a história do tripé no teatro, com o Adolfo Gutkin e a Manuela de Freitas. Isso aplica-se às canções, evidentemente, e a todas as artes. Mas desde as suas origens nos anos 60 que o pósmodernismo tira o pé da ética. Defende que o artista deve criar da forma que entende e que não é responsável pela comunidade. O império da forma sobre o conteúdo. Todavia, a separação entre a forma e conteúdo é um embuste, uma falsa questão. A forma é pura e simplesmente a materialização de um conteúdo. Nós dizíamos que enquanto o artista está sozinho a obra não é expressa, não há criação, nem sequer ao nível da masturbação, porque não há consequências práticas da existência da obra. O momento da criação é solitário, mas ali a obra ainda não existe. Quando vai para cima do palco é que se partilha e passa a acontecer. Sem o público não há espetáculo. Não há um quadro que exista sem ser visto. A Ocupação do espaço da comunidade implica uma relação. O pós-modernismo tenta tirar esta parte. Por isso, deixou de se falar em paixão em torno da música. Agora diz-se estamos a trabalhar num projeto, e é tudo muito frio, feito para si mesmo. Mas a ética está lá. Em arte não existe espaço para a neutralidade Exprimir-se é estar em interação. O resto são as montras do bairro vermelho de Amesterdão.
A cantiga ainda é, pode ou deve ser uma arma?
É sempre, mesmo que não se queira. Não há neutralidade no canto. Sou contra o jargão de música de intervenção, porque tudo é intervenção. Mesmo a atitude do pós-modernismo é uma forma de intervir, anulando a sua relação com a comunidade, da qual se depende e se está inserido. O Tony Carreira é mais músico de intervenção do que eu. Para ele a cantiga é uma arma poderosa. Mas como dizia o Ho Chi Minh, no Vietname, uma G3 na mão de um vietcongue é uma coisa, na mão de um soldado americano é outra.
Tem celebrado 50 anos de carreira, com iniciativas discográficas, como a reedição da obra, este disco ou um best of, que está para sair. Mas já passaram 14 anos desde Resistir é Vencer. Porque não grava um novo álbum de originais?
Não encontrei a forma de exprimir o que estou a sentir agora. O mundo está muito feio. Hoje em dia sabemos relativamente bem o que não queremos, mas não percebemos patavina do que queremos. O meu olhar sobre o mundo é esse. Há coisas que me preocupam imenso. Acho que vamos viver uma longa época de sofrimento da humanidade. Isto não é uma sensação pessimista. Ainda estou naquela coisa do otimismo relativo do Marx. Um otimismo com a consciência de que há um longo caminho a percorrer, com muitas pedras, muitos obstáculos. Ao mesmo tempo, estou cada vez mais calmo em relação a isso. O aspeto mais percetível é o da desculturação universal – que é um dos eixos principais do capitalismo. O transporte do domínio de classe para dentro dos cérebros das pessoas – é muito diferente do tempo em que cresci. Sendo certo que um dia isto tem de rebentar por qualquer lado, e a vida vai melhorar.
Também deixou de dar concertos. Porquê?
Deixei de estar em cima de um palco a cantar as cantigas do costume. Eu gosto das cantigas, o público também – acende isqueiros, telemóveis e não sei quê. Só que eu sentia-me mal no palco porque o mundo já não é aquele de que estou a falar. Há uma coisa nova na minha vida que ainda não consegui escrever na minha biografia. Os espaços grandes entre os meus discos têm a ver com isso. Não é por falta de voz ou por estar velhinho. Apenas, falta de assunto. E há que ter a coragem de assumir essa condição.
Mas sempre foi um lutador. Sem a ‘arma’ das canções como faz a sua luta?
Qualquer tipo de criação artística é uma forma de luta contra as duas coisas mais agressivas que há no mundo: a ignorância e a mediocridade. Elas mandam em tudo. O grande problema do capitalismo de hoje é que só tem um assunto: o dinheiro. Aquela coisa de fabricar pão, objetos, caminhos de ferro, navios… desapareceu, dasapareceu aquela expansão industrial do século XIX -uma coisa lindíssima, que quebrou com a decadência da era feudal, abrindo um caminho para o progresso. Vai ter que aparecer de algum lado uma luz. É uma longa caminhada que é preciso começar a fazer. Uma vez que não há estratégia, não há razão para acender os máximos no carro. A única hipótese é começar por aquilo que está perto, o que está em baixo e o que se passa agora – no bairro, na escola, na empresa, em casa…. É aí que os valores têm que existir. Dou razão ao Wilhelm Reich quando dizia que a revolução é uma coisa que começa por dentro e passa para fora. Só que não há canções para falar sobre isto.