Não se deitam comigo corações obedientes é o primeiro disco d’A Naifa sem João Aguardela, mas não se pode dizer que João Aguardela não esteja presente. Está na ideia. Está no espírito. O disco é o inevitável passo em frente, sem apalpar o chão, a arriscar o abismo. Mas não houve passo em falso ou queda desamparada. Caminhar no escuro não é para todos, mas há casos em que não há outra luz que faça sentido.
João Aguardela morreu em janeiro de 2009, deixando A Naifa órfã de poesia. Recorde-se que, como o JL revelou em primeira mão, as letras do último álbum, Uma inocente inclinação para o mal, eram do próprio Aguardela, sob um pseudónimo feminino. “O Coração que me deixaste é uma casa difícil de habitar”, como se adivinhasse, Renata Correia Botelho, logo no primeiro tema do disco, sintetiza o trauma, como só a poesia sabe fazer. A luz que iluminou o caminho para este quarto álbum d’A Naifa foi a própria poesia. Primeiro, Margarida Vale de Gato, que desbloqueou as canções, clareou as ideias, pediu música para as palavras. Depois descobriram-se outros poemas e outras poetis as: Renata Correia Botelho, Ana Paula Inácio, Maria do Rosário Pedreira e a já recorrente Adília Lopes. Todas mulheres, não por (pre)conceito, mas porque calhou assim. A Naifa reinventou-se na continuidade. Luís Varatojo assumiu as rédeas da banda, Sandra Batista (companheira de João) entrou para o baixo, Mitó canta com mais certezas e Samuel Palitos dá-lhe o ritmo. É o álbum mais limpo e mais rock da banda. Ironicamente, nunca A Naifa teve uma ideia tão clara do que é o seu som. Encontrámo-los na Baixa da Banheira, a testar o som e as luzes para o concerto, sentámo-nos nos degraus das escadas e falámos do fado, da poesia e do João. Hoje, dia 7, o novo álbum é apresentado no Teatro São Luiz.
JL: Este álbum é igual mas diferente. Era isso que tinham em mira?
Luís Varatojo: A mira foi a mesma de sempre: começar a construir as canções e ver o que elas vão dando. E, claro, nunca fazer uma coisa igual ao que está para trás, senão não tem interesse nem para nós nem para quem ouve. E depois os textos são muito importantes, porque acabam por moldar o ambiente das canções e do disco. E aí entrou, sobretudo, a Margarida Vale de Gato.
Partiram dos poemas dela?
Mitó: No início estava a ser muito difícil encontrar a linguagem pretendida. Ela foi o nosso motor de arranque.
Todas as letras são de mulheres. Porquê?
LV: Não foi uma ideia concetual. Havia mais poemas escolhidos, alguns eram de homens, mas acabaram por não entrar. Se calhar há mais mulheres a escrever como nós gostamos
Sandra Baptista: Condiz com esta linguagem que temos agora, um pouco mais desprendida, em que não há muito a perder. Com uma mulher a cantar é mais fácil a identificação.
LV: Mas aquelas histórias não são só de mulheres… Não são histórias de tampão OB.
Foi o que encontraram de mais parecido com a poesia do João?
M: Não estávamos à procura de uma coisa parecida, mas pondo as coisas nesses termos, a verdade é que também não é muito diferente. Mas se fosse para ser parecido, tínhamos usado textos inéditos do João.
Chegaram a pensar nisso?
M: Equacionámos, mas não quisemos ir por aí.
Sentes uma maior facilidade em interpretar letras de mulheres?
M: Não diria facilidade, nos outros álbuns canto muitos poemas que não estão no feminino. A partir do momento em que os poemas são todos cantados no feminino, como aconteceu no terceiro disco, define-se melhor uma personagem, a personagem que eu uso para cantar. No primeiro e segundo disco essa personagem era mais transversal.
Concordam que este álbum está mais próximo do terceiro álbum d’A Naifa do que dos dois primeiros?
LV: Está mais próximo porque é o quarto. A Naifa já passou por uma série de coisas, boas e más, e estes temas acabam por refletir isso.
O vosso método de trabalho é sempre o mesmo. Como funciona?
LV: Às vezes há pedaços de música já feitos que se vão casando com os poemas, outras vezes a música sai por causa do poema. É sempre o poema que guia.
Imagino que, desde o início, a bateria tenha sido difícil de encaixar, numa banda atípica, com guitarra portuguesa e tons de fado….
Samuel Palitos: Foi uma experimentação. Tentar perceber como se pode pôr uma bateria em cima de algo tão delicado. Foi difícil para mim, mas com a ajuda de todos consegui contribuir para o resultado final do trabalho, mantendo sempre o meu estilo.
E tu sabes cada vez melhor o que fazer com a guitarra portuguesa. Porque foi uma verdadeira aventura para ti… Está cada vez mais fácil?
LV: Não. Eu até tive aulas com um mestre da guitarra, por isso já sei tocar uns fadinhos e aproximei-me mais da técnica correta. Mas há coisas que queria usar mais neste disco e não consegui. Tive de fazer um trabalho de limpeza. É uma ironia, agora já consigo dar mais do que uma nota de cada vez, mas não deu para encaixar. Era para aí que tinha que ir: isto não é um concerto de guitarra, a guitarra tem que ir atrás das canções.
Chegaram a pensar em acabar com A Naifa. O que vos levou a continuar?
M: Ainda estamos a pensar nisso… Claro que, depois do que aconteceu, todos os cenários se colocaram, naquele período que tivemos de descanso. Houve uma altura em que nem sequer apetecia. Pessoalmente, quem me fez tomara a decisão de voltar foi a Sandra.
SB: Dentro da anormalidade do que se passou, foi um processo muito natural. Nunca chegámos a um ponto de nos reunirmos para decidir. As coisas foram andando até hoje. Sempre que alguém morre, unimo-nos àqueles que viveram a pessoa que partiu. E todos nós vivemos o João de forma muito intensa. A vontade que dá é estarmos juntos e tínhamos que gravar este disco, para dar continuidade.
LV: E sobretudo quando fizemos a minidigressão de apresentação do livro sentimos que tocar com esta formação continuava a ser A Naifa. Sentimos no palco que A Naifa podia ter uma segunda viva. O que acontecia quando estávamos com o João tinha que voltar a acontecer com a Sandra… E acontece.
E como é que é andar com uma vegetariana na estrada?
[risos] M: Em Lisboa e no Porto ela está safa, agora nos outros sítios…
SB: Não estou, porque eles querem sempre o melhor restaurante não sei de aonde… Eu só não entro em marisqueira.
LV: O mais giro é quando avisamos que uma das pessoas é vegetariana e eles dizem; ‘Não faz mal, temos salada de atum”… Mas é um problema, porque a Mitó não come glúten, eu tenho colesterol… O que vale é que toda a gente bebe vinho tinto.