Poeta (com a obra mais extensa do século XX português), ensaísta e crítico de primeiro plano, a 17 de outubro António Ramos Rosa faria 100 anos. De seguida, um texto sobre o conjunto da sua obra, do nosso crítico, também (re)conhecido poeta, ensaísta e ficcionista, António Carlos Cortez.
1. POESIA CONTRA A AUSÊNCIA
Pensar os versos e as imagens nos livros de António Ramos Rosa (ARR) exige, como pediu Eduardo Lourenço num célebre e axial prefácio à edição de Não posso Adiar o Coração, intitulado “Poética e Poesia de Ramos Rosa – ou o Excesso do Real” (in Obra Poética I- 1958/1973, Plátano, 1974) uma extrema atenção relativamente ao excesso com que esses versos e imagens dizem de um mundo onde a poesia se faz lugar de confronto com uma “Ausência desarmável”.
Essa ausência não é já a ausência metafísica de Pessoa, nem a psicológica de Régio, nem é sequer a ausência ideológica com que o neo-realismo se debate. É antes uma ausência donde irrompe a intuição de uma “presença apaziguante e inesgotável”, diz Lourenço.
Uma ausência plena de uma solaridade que ora é miragem, ora é uma quase cegueira, tal o modo como o poema se recria para atingir, através de uma extremada dialética de opostos (foi João Rui de Sousa quem melhor expôs essa dialética de dicotomias que caracteriza a arte ramos-rosiana) uma poesia-crítica onde a ideia de “aventura” é uma constante sondagem àquele mundo – o do poema.
Escrever poesia é não só incorporar a materialidade do real no poema, mas recriar o modo como, olhando-a, essa realidade se afirma poeticamente como coisa tangível
Como bem viu Gastão Cruz, essa sondagem exige que o poeta conquiste, a cada novo livro (e no caso de ARR foram 107 livros de poemas o que publicou até ao último ano de vida, 2013), um mundo de linguagem que só existe como poesia quando ela é risco, reinvenção e, ao mesmo tempo, edificação “de um mundo pedra a pedra”.
Prova dessa poética que se faz da urgência de ter de responder à asfixia de um tempo político-social erguendo um edifício perene, são os poemas de O Grito Claro (1958).
Aí vislumbramos a influência de uma poesia de denúncia (“O Funcionário cansado”, “O Tempo Concreto”, “O Boi da Paciência”, “Telegrama sem classificação especial”), todavia, neles está já em andamento uma conceção do poético que não poderá ser nunca feito da idealidade da Poesia, como em Sophia, nem sequer figurado como “morada de cristal”, como em Eugénio de Andrade – e muito menos poesia arregimentada a qualquer um dos dois “ismos” (neorrealismo e surrealismo) que a antecedem historicamente.
A situação de ARR face à Ausência como questão da poesia é outra: o poeta de Terrear (1964) sabe que toda a poesia é um incumprimento. Há uma suspeita permanente em relação àquela solaridade, àquele fascínio da ontologia da palavra que se traduzirá numa poética de restituição: escrever poesia é não só incorporar a materialidade do real no poema, mas recriar o modo como, olhando-a, essa realidade se afirma poeticamente como coisa tangível.
Daí que a declaração de um título como “Estou Vivo e Escrevo Sol” tenha de ler-se como declaração vital de uma poética: a poesia é o discurso onde o sujeito vai abolir todas mentiras, fazendo do momento da escrita esse tempo-espaço-corpo em que ele mais não é que “este momento puro/ no ato de escrever e sol”.
É também por isso que a luta contra a Ausência é em ARR uma reformulação daquele projeto de Caeiro: o de retirar da realidade a metafísica, isto é, expulsar a ganga conceptual que condena ao pensamento asfixiante uma existência que se deseja, na linguagem, um espaço onde as palavras não teriam mácula.
Ramos Rosa, na verdade, parte daí, de Caeiro, para chegar àquela coincidência que muito deve ao magistério de Éluard: a co-incidência entre imaginação e realidade, entre criação (escrita), criador (autor) e criatura (o poema).
Se Caeiro postula a “aprendizagem de desaprender”, o poeta de A Pedra Nua (1972) defende o regresso a um silêncio inaugural onde “ser no olhar o próprio olhar” é saber que, escrevendo, “a maravilha é este espaço aberto / a rua / um grito / a grande toalha de silêncio verde”.
Melhor: regresso a um silêncio primordial a partir de cuja matéria – o próprio silêncio – a palavra pudesse ser o corpo materializado de um sujeito que se detém a ocupar o espaço desse silêncio primevo.
Operação radical, o poema seria “se [o poeta] [se] detivesse” num quarto, ou numa praia, ou numa rua, o gesto de “encher / um tronco / de silêncio / até à fronte” (“Se me detivesse”, in Nos Seus Olhos de Silêncio (1970). Tal empreendimento pressupõe um grau de individuação que só a poesia como excesso de um dizer contra a ausência pode realizar.
Esse empreendimento terá, ainda num livro capital de 2001, O Aprendiz Secreto (edições Quasi), a sua figuração final: “O construtor terá sempre em conta a flexibilidade da brisa e o peso maciço do ser. A sua construção será contemplativa, abismada entre as falésias de mármore e o rio tranquilo que o envolve. […] segundo o princípio de individuação do ser e da sua integridade solar.”
2. POESIA-CRÍTICA COM LIBERDADE LIVRE
Porque a poesia é “um diálogo com o universo”, sentença que é quase um manifesto nos termos em que tal se enuncia no número 4 de Árvore, o último, ARR não irá desvincular-se nunca dessa dimensão crítica porque é por essa via que a poesia também se faz diálogo com outras poéticas.
Marcado pela poesia francesa desde a sua cidade natal, Faro, onde, pela mão da Alliance Francaise, pode ler a poesia e o ensaísmo de autores formadores da sua sensibilidade (Jean Cassou, Henri Michaux, Aragon, Paul Éluard – este último ecoa em inúmeros passos de Viagem Através de Uma Nebulosa), Ramos Rosa imprime ao ensaísmo português uma energia que lhe advém de uma perspetiva crítica carnal, sensorial. Escrever crítica é pôr em circulação os signos da fala e das falas; é um gesto de comunhão e de compreensão.
Uma leitura atenta do fenómeno poético não dispensa afirmações de autonomia crítica, querendo o autor de O Incêndio dos Aspetos (1980) que o ato de escrever poesia signifique uma alteração dos modos de ser-se no mundo e uma espécie de extensão do momento de liberdade que é escrever um poema.
Ramos Rosa imprime ao ensaísmo português uma energia que lhe advém de uma perspetiva crítica carnal, sensorial. Escrever crítica é pôr em circulação os signos da fala e das falas; é um gesto de comunhão e de compreensão
Essa contaminação da poesia pela crítica e da crítica pela poesia é fruto de um empenhamento singularíssimo: a poesia está no centro de um debate espiritual cruciante “o maior e o mais decisivo do nosso tempo” dirá em Poesia Liberdade Livre: 11-12, (1962), livro capital do ensaísmo literário português.
Aí se define a poesia como “a luz de uma nova aventura do espírito sob o signo da liberdade” e talvez por isso, num ensaio intitulado “Crítica e Literatura”, de 1971, a sua crítica e ensaísmo, distantes do tom neutro da crítica e do ensaísmo seus contemporâneos, espelhem bem as influências de Starobinski, de Georges Poulet, de Bachelard e de Blanchot, eles próprios teóricos para os quais o poema é uma negação do mundo, a proposta de uma realidade dentro do real.
Certos termos – “abertura”, “movimento de leitura”, “leitor-crítico” – em si mesmos pertencentes a um campo conceptual em que poesia-liberdade-leitura são ações intercambiáveis, dão conta da imersão de ARR no pensamento de matriz francesa que coloca como dicotomia essencial a resolver-se a questão do sentido da poesia versus a razão lógica.
Se em Ramos Rosa ler é sentir o que se lê, e é esse o sentido da sua dupla condição de poeta-crítico, então ler é sentir, sentir é comunicar e comunicar é viver livre.
Para o autor de A Poesia Moderna ou a Interrogação do Real (1978) essa liberdade opõe a lógica de Lupasco à lógica preposicional, problema logo referido nos textos iniciais do livro de 62, Poesia Liberdade Livre. A poesia é, então, a busca da significação e uma libertação com vista a à ação integradora do poema, que é “uma comunicação ao nível da própria existência” (PLL, p.29-30).
Esse nível de significação só é possível atingir, dirá em Incisões Oblíquas, de 1987, pelo leitor-crítico quando a obra propriamente dita já atingiu “o nível de afirmação de si mesma” (p.48).
3. UMA POESIA HUMANA E HUMANISTA
Estamos, pois, perante um ensaísmo humanista, comprometido com um único programa: descobrir, na escrita, através da escrita, o “homem autêntico”, que é não só a injunção do poeta dizendo o que é, mas, ao mesmo tempo, afirmação de que, como poeta, ele pode ser outro.
É em face da inautenticidade que o poeta se afirma como ser que quer ultrapassar a ambiguidade, isto é, aquele “vazio interior” (veja-se o ensaio “O Poeta e o Homem Autêntico e Humano”, em PLL).
A sua poesia é uma poesia de profundo humanismo, jamais egotista, jamais virada para dentro de si, mas sempre reflexiva, demandando compreender por que razão a poesia é a grande arte dinâmica e por isso necessária
Entre o pensamento crítico do ensaísta que foi ARR e o poeta há, logicamente, múltiplos pontos de contacto, pois também a sua poesia é uma poesia de profundo humanismo, jamais egotista, jamais virada para dentro de si, mas sempre reflexiva, demandando compreender por que razão a poesia é o espelho das contradições humanas e por que razão é a poesia a grande arte dinâmica e por isso arte necessária que vive da contradição fecunda através da qual quem lê poesia se descobre na sua indeterminação.
Silvina Rodrigues Lopes, no posfácio que assina à edição da Obra Poética I (Assírio & Alvim, 2018) lê esta linguagem de restituição como fruto de uma obsessão: escrever é para ele “[a] possibilidade de conviver com o desespero e de o varrer da vida, na expectativa, sem razão e sem limites, de poder acreditar que a saída do emparedamento se dá através de uma sensação de regresso ao sem-nome, o informe, que muitas vezes designa como água, associando-o ao silêncio, venha ele das palavras, da mudez, do grito ou de uma relação imediata com a matéria.” (p.1211).
4. UMA POÉTICA QUE COMEÇA NOS TÍTULOSE A ELES REGRESSA
Como afirmação de uma poética interventiva e humanista, como recomeçar a ler ARR hoje? Talvez sendo sensíveis à leitura dos seus ensaios, mas porventura, aos seus títulos. É a partir deles que mais densamente se erigem como propostas inter-inventivas os seus poemas.
Os títulos são, não raro, imagens, metáforas. Sublimes catacreses. Esta é uma arte que toma o impróprio como sinónimo de risco. Definir, escreve, será trair e não se queira, por isso mesmo, ao ler os seus livros, definir esta poesia de modo literal.
O literal não é nunca solução para ler ARR pois que “a fruição de um poema dispensa efetivamente o prolongamento interpretativo que é possível encontrar-lhe” (PLL, 35).
Significa isto que não há caminho de leitura que venha a ser significação? Significa outra coisa: que o processo poético esbate-se quando tentamos explicar até ao limite o trágico que nos poemas de ARR está contido. Ao leitor pede-se que frua das imagens, pois é a partir de uma perceção imediata, irrepetível que o leitor pode iniciar essa senda de compreensão.
Os títulos são, não raro, imagens, metáforas. Sublimes catacreses. Esta é uma arte que toma o impróprio como sinónimo de risco
Por isso os títulos. Por aí recomeçar. Títulos onde a defesa intransigente de um não-saber, de uma ignorância essencial, condição mesma da poesia, se pressente.
Os títulos são os pontos luminosos que, numa obra extensa, constituída por 107 volumes de inéditos publicados entre 1958 e 2013, registam a imaginação turbilhonante através da qual se assiste ao ressematizar a linguagem: Terrear (1964), Estou Vivo e Escrevo Sol (1966), Nos Seus Olhos de Silêncio (1970), Animal Olhar (1975), Respirar a Sombra Viva (Vol. III da Obra Poética); O Ciclo do Cavalo (1975), A Nuvem Sobre a Página (1978).
Mesmo nos últimos anos, a cuidadosa escolha de certos lexemas que, cruzando-se com outros, logo na capa indicam uma voz e uma autoridade pela assinatura, produzem um sentido, um grau de significação que pede a colaboração imaginante de quem lê.
Sirvam de exemplo, dos anos finais, títulos como Pátria Soberana seguido de Nova Ficção (1999), livro que, vi-o Gastão Cruz no posfácio, reitera a conceção da poesia como “aventura da linguagem”. No caso de ARR esse mundo poético – é ainda Gastão Cruz quem o afirma – depende, quase sempre de uma ideia-chave, de uma palavra nuclear em torno da qual os poemas se vão estruturar.
Concentração que comunica com um símbolo ou uma imagem. Dos títulos aos poemas que se organizam como sequências, o desafio do sentido inscreve-se logo em poema-título / títulos-poema.
Mesmo nos livros de ensaio os títulos são a génese de uma ação que recupera o problema do sentido. Títulos como Incisões Oblíquas (1987) ou A Parede Azul (1991), insistem nessa dimensão teórico-filosófica que, desde o rimbauldiano Poesia Liberdade Livre demarcava o território invulgar na nossa literatura que é ARR.
Recomeçar pelos títulos, mergulhar no seu ensaísmo e fruir, depois, a sua poesia. Compreender os ecos: Deambulações Oblíquas (2001); Os Volúveis Diademas (2002), vendo como se constrói o binómio “volúvel” e “diadema” (como fez Paula Cristina Costa em ensaio prodigioso).
Os títulos questionam a “intacta ferida”, a “pedra nua”, os pássaros ou as árvores, um rosto feminino ou o pensamento ou presença de alguém que no poema é escrito com a energia de uma “dinâmica subtil” – palavra nuclear que, numa poética de forças opostas (luz/sombra; ausência/ presença; terra/ ar) – pode ajudar-nos a perceber que a poética de António Ramos Rosa vive dessa vontade de extravasar a estrutura da própria gramática, pois no poema “as palavras já não obedecem às relações gramaticais, mas condensam em si múltiplas virtualidades significativas.” (PLL, p. 41).