Dulce Garcia (DG) publicou este verão Olho da Rua, possivelmente o romance que, não sendo diretamente político, se constitui como a narrativa mais política publicada em Portugal nos últimos tempos, prognosticando o futuro abertamente neoliberal para que Portugal se encaminha nas próximas décadas.
Trata-se do retrato pormenorizado de uma empresa de publicidade e comunicação, que se vê na contingência de despedir um empregado e entrega essa função aos trabalhadores, que escolherão, em reuniões sucessivas, aquele que será despedido, lançando o pânico entre estes, com exceção da diretora – Hiena – e da coordenadora das reuniões – Coruja.
Olho da Rua é m romance de personagens, aliás, na continuidade de Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum (2017), o seu primeiro romance. Em Olho da Rua, o conjunto das personagens ocupa o centro da narrativa, o que significa que são descritas minuciosamente nas suas vertentes individuais, familiares e psicológicas, criando uma rede de caraterísticas sociais que, no seu todo, representam a história de Portugal no presente e nos tempos mais recentes (pais, alguns avós).
É uma das virtudes de Olho da Rua: dar ao leitor um retrato social e ideológico de um subgrupo social que, sendo português e europeu, vive segundo métodos de trabalho de empresas americanas e, no caso específico do romance, japonesas, ou seja, evidencia a história do presente sem sobrecarregar o leitor com registos históricos paralelos.
Outra virtude: trabalhar literariamente as personagens (não as mostrar segundo um realismo social cru – a normalidade hoje no romance português): ao contrário da habitual personificação (encarnar qualidades humanas nos animais ou forças naturais), as personagens humanas, sem o valor da fábula, encarnam metaforicamente qualidades de animais, uma espécie de “animalização” do homem: a “abelha”, a “barata”, a “mosca da fruta”, a “hiena”, a “coruja”, a “ursa”, o “cisne negro”, mas também a “mulher” no sentido de síntese dos problemas negativos atuais das mulheres (aborto, realização sexual, depressões, alguma exclusão…). A “abelha” trabalha afanosamente, mas não sai de uma pobreza envergonhada; a “barata”, aliás, o “barata”, prefere situações dúbias e, manhosamente, sobrevive a tudo; a “mosca da fruta”, que fura a casca das fruta e depõe as larvas no interior para as alimentar, representa, de certo modo, a figura do parasita, o que resume o seu trabalho a, não tanto a produzir, mas a influenciar os outros; à “ursa” tudo lhe corre mal, divorciada, mãe de três filhas, um corpo disforme pelas gravidezes, é a que, aparentemente, será despedida pelos colegas (sê-lo-á?), o “cisne negro”, casado com a filha do “dono disto tudo” (“Como é que se leva um banco à falência, caraças? É preciso ser muito atraso mental” (p. 45), que resume a sua vida a fazer compras, é um ressentido contra a diretora, sente-se incompreendido e injustiçado; “Hiena”, diretora-geral, neta de um sapateiro e de uma costureira, filha de uma mãe engravidada de um homem rico, casado e zarolho, educada pela “madrinha” (mulher do homem zarolho), criticada por todos, tem de defender o lugar que atingiu e prestar contas ao proprietário da agência. A tensão (artimanhas de defesa e ataque) entre este, o filho deste e a “Hiena” é das melhores partes do romance, evidenciando um domínio muito completo por parta da autora do universo da psicologia do conflito.
Deixamos ao leitor o prazer de descobrir as peripécias da rede evolutiva do Olho da Rua. Vale a pena: entre as personagens principais e secundárias (mães, pais, amigos/as, namoradas/os…, mais de uma dezena), sempre o leitor encontrará o retrato de um seu conhecido. Evolução, aliás, recheada de inúmeras surpresas, como a danificação do carro da “Hiena” e o assassínio desta de um modo muito original e muito bem conseguido (através do objecto-fetiche que lhe sintetizava a vida). No final, o leitor descobrirá se alguém (e quem) foi despedido.
Romance escrito numa linguagem coloquial, informal, sem cair na retórica ou eloquência (a normalidade no romance português de hoje), usando um léxico comum, aborda com mestria o universo das relações sociais e sentimentais no seio de um grupo fechado, fazendo lembrar por vezes a escrita de algumas autoras da décadas de 50 e 60 (ainda DG não era nascida), como Isabel da Nóbrega e Fernanda Botelho, mas sem o elemento da competição entre-pares, que a autora introduz neste romance, tudo lhe subordinando.
De chamar a atenção do leitor para a conjugação da epígrafe à primeira parte com a nota final “Notícia partilhada no Facebook” – nesta conjugação reside a “moral”, digamos assim, de Olho da Rua.
Se, com o primeiro romance, DG prometia (“invejável desembaraço vocabular” – badana esquerda), como escreveu Eduardo Pitta na Sábado, com o segundo (sempre mais difícil do que o primeiro) ganhou carta de alforria, isto é, o direito de ser referida como um dos novos escritores de portugueses de qualidade, emergentes na segunda década do século XX.