Confessa-se viciado na escrita, um grafomaníaco sempre pronto a assentar pensamentos, notas do quotidiano, argumentos, personagens, tudo o que atravessa o seu quotidiano. E dessa escrita contínua têm surgido os mais diversos livros, que tocam todos os géneros literários, incluindo o diário, cuja publicação estará para breve, numa revelação (nem sempre contínua) de mais de 50 anos de vida literária. Não espanta, por isso, que apesar de estar ainda bem forte na cabeça dos seus leitores a memória de Embora Eu Seja Um Velho Errante, volume de 2021 que selou (provisoriamente?) a sua relação com Tiago Veiga, uma das suas grandes criações, a quem dedicou uma monumental biografia, surja agora um novo romance, nas livrarias a partir do próximo dia 30.
Apoteose dos Mártires, uma edição da D. Quixote (208 pp, 16,90 euros), é um regresso ao tema da espiritualidade e da religião, já abordado em Tríptico da Salvação, de 2019, e ao Oriente, presente em Peregrinação de Barnabé das Índias, de 1998, e Os Naufrágios de Camões, de 2016. Centra-se no martírio de Frei Redento da Cruz (Tomás Rodrigues da Cunha) e Frei Dionísio da Natividade (Pierre Berthelot) em Achém, no século XVII, no âmbito de uma missão diplomática que não chegou a bom porto. Mais do que reconstituir a época, quis encontrar a voz desta entrega à fé, sem esquecer a comunhão fraternal de dois irmãos de uma mesma congregação.
Nascido em 1941, Mário Cláudio (pseudónimo literário de de Rui Manuel Pinto Barbot Costa) estreou-se em 1969, com o volume de poemas Ciclo de Cypris, e tem assinado um dos percurso literários mais singulares e premiados da literatura portuguesa das últimas décadas. Recebeu, entre outros, o Grande Prémio de Romance e Novela da APE (por três vezes), Prémio Vergílio Ferreira, Prémio Fernado Namora ou Prémio Pessoa, entre muitos outros. E aprende a escrever todos os dias, até no facebook.
Jornal de Letras: Frei Redento da Cruz é uma figura da história de Paredes de Coura, cidade também associada à sua vida e obra. Foi essa proximidade que o conduziu a este mártir e a este livro?
Mário Cláudio: Nunca teria chegado a esta figura se não tivesse uma relação íntima com Paredes de Coura. Frei Redento da Cruz está presente na toponímia, há um largo com o seu nome, tal como um restaurante, e uma ligação a uma família local, embora ele tenha nascido numa terra chamada Cunha (um apelido muito comum na região).
O que o fascinou na figura?
O conceito de martírio. O romance é uma reflexão sobre essa condição. O livro abre com uma citação de Albert Camus que sugere ser essa uma tarefa inútil, pois nunca se sabe o que se passa na cabeça de um mártir. Tem certamente uma paixão por uma ideia, uma figura, por Deus ou pelo Absoluto, o que quer que seja. Mas é curioso ver que o conceito de mártir é completamente diferente nas três religiões do livro. No Cristianismo assume a dimensão individual. E não há memória de mártires que, para se destruirem, tenham feito destruir tudo à sua volta. São autoimolados. O mártir cristão nunca se suicida. Pode de alguma forma pactuar com a morte que lhe é imposta ou oferecer-se para ela. Maximiliano Maria Kolbe, por exemplo, entregou-se à morte, por sua vontade, para salvar um pai de família no campo de concentração de Auschwitz.
A citação de Camus é de facto muito intrigante, porque diz que os mártires podem ser esquecidos, ridicularizados ou usados, mas nunca compreendidos. Quis ainda assim entender essa experiência individual?
Sim. Tentei compreender numa dimensão que talvez não seja objeto de reflexão. Porque ele martiriza-se com um companheiro, Frei Dionísio da Natividade. Há uma questão de fraternidade ou solidariedade humanas, de amor profano, não físico, mas espiritual, por um irmão da mesma ordem. Amparam-se um ao outro e provavelmente isso terá, de alguma maneira, dulcificado a morte de um e de outro. Não estiveram sozinhos. Como se o amor que tinham um pelo outro se consagrasse ou consumasse através da morte. Se calhar é uma visão herética que vai contra o que diz a teologia. Mas este livro também é uma reflexão sobre a espiritualidade fora do âmbito da sacristia. A última coisa que queria era que este livro cheirasse a sacristia, que produziu imensa literatura de má qualidade e completamente derrotada pelo naturalismo, realismo e pelo romantismo.
A própria vida destes mártires é propícia a essa abordagem fora da sacristia, porque além de mistério encerra também muitas aventuras, espantos e sucessivas descobertas.
É verdade. Eles chegam ao patamar da espiritualidade e do martírio depois de um percurso pelo mundo. Redento da Cruz é militar, responsável por um forte. Dionísio da Natividade é um cartógrafo notável, há mapas seus no Museu Bitânico, e piloto real nomeado pelos portugueses. Antes de chegarem à religião, lidaram com o que há de mais humano, em todas as suas expressões. Mas neste livro há sobretudo uma tentativa de reabilitação do sagrado.
Em que sentido?
Não é preciso recuar até ao Padre António Vieira para encontrar na literatura portuguesa várias expressões do sagrado, da metafísica e da espiritualidade. Essa presença chega ao século XX, incluindo a uma figura como José Saramago quando escreve Memorial do Convento. Mas a partir dos anos 60 instalou-se em Portugal uma espécie de preconceito anti-religioso que fez com que tudo o que fosse cristão se considerasse menor, sinónimo de atraso mental. Quando andava na faculdade, falar em Deus era quase dizer uma obscenidade.
É curiosa essa referência, porque nos romances que se publicam hoje em dia a caracterização das personagens raramente passa pela religião.
Passa sempre pelo sexo, mas nunca pela religiosidade, que é uma dimensão importantíssima do ser humano. Mesmo a poesia do século XX portuguesa, salvo raríssimas exceções (como a Sophia, Ruy Belo ou Echeverria), é sempre muito envergonhada nesse cunho religioso, tem medo de entrar por aí, pois é sempre classificada de beata ou qualquer coisa do estilo. Parece-me um fenómeno muito português. Estou a lembrar-me de grandes escritores franceses que não tinham qualquer relutância em confessar a sua inscrição na Igreja.
Será ainda a associação entre Estado Novo e Igreja?
Sim, isso ainda está muito presente na cabeça das pessoas e manifesta-se, por exemplo, nas redes sociais. Ando pelo facebook e acompanho isso. As pessoas reagem com muita renitência sempre que há uma referência ao religioso, exceto na música. Claro que há figuras que continuam a ser muito respeitadas no campo da literatura, como José Tolentino Mendonça, embora não falte quem lhe morda os tornozelos por ser membro da Igreja. É uma questão de mentalidade que terá de mudar. Se não se tem nada contra os budistas ou até contra os protestantes, porque se tem contra a Igreja que tem dois mil anos de existência e que está sempre em crise e a relevar-se?
Dividida em três partes, a estrutura do romance não surpreende o leitor, mas há pequenas variações em cada uma, com narrações na primeira e segunda pessoas…
… Essa variações foram programadas, não surgiram espontaneamente. Aliás, este foi um livro que me deu muito trabalho. Desde logo de pesquisa, para não incorrer em erros de palmatória. Mas também para não cair no que me parece ser a grande fragilidade do romance histórico (o que eu não escrevo, apenas romances na história).
Que fragilidade é essa?
O alardear de uma grande erudição, com descrições pormenorizadas dos fatos e das fatiotas, dos lugares e dos cenários. Claro que tive de me documentar a esse nível e também os refiro, mas não insisto muito aí para não ficar essa sensação de produto de biblioteca. Sobre os romances que escrevia e que eu julgo também escrever, Marguerite Yourcenar dizia que é de ficar de pé atrás quando alguém se mete a estudar uma figura numa biblioteca para fazer um romance histórico. Não sai retrato, mas caricatura. A alma desaparece por completo debaixo de um aluvião de informações e erudições de todo o tipo.
Procurou o tom certo, mais contido?
Sim. Há muita informação sobre o Redento da Cruz, embora não tanta como a que encontramos de Dionísio da Natividade, que na terra em que nasceu, Honfleur, na Normandia, é muito celebrado. Interessou-me fazer este livro na continuação de um anterior, Tríptico da Salvação, que também lida com matéria religiosa. Aliás, a nível cronológico, um sucede ao outro, o primeiro contempla o período da reforma protestante, este o período logo subsequente, com o triunfo da Companhia de Jesus e da confrontação da Igreja Católica, no que era o Império Português, com os holandeses de formação luterana.
É também um regresso ao Oriente…
…Exato. Este livro também faz uma trilogia com Peregrinação de Barnabé das Índias e Os Naufrágios de Camões, com uma sequência cronológica.
Essa persistência em figuras, temas e geografias portuguesas quer dizer que a nossa história ainda tem muito por contar?
Muito. E essa convicção é ainda mais importante numa altura em que há uma pressão para que nos envergonhemos diariamente do que foi a nossa história, numa espécie de inquisição ao contrário. É preciso refletir, perceber o tempo próprio em que as coisas se passaram, evitar ler os acontecimentos a partir de conceitos atuais. Isto não significa que não se lamente o que resultou em crueldade, falta de humanidade e de espírito cristão em relação às populações dominadas e ao racismo. O importante é que não se volte para trás nas conquistas, que se continue a humanizar o mais possível o nosso comportamento.
A literatura pode ter um papel importante nessa dificuldade contemporânea de reconhecer os erros do passado e ao mesmo tempo contar esse mesmo passado?
Não só a criação literária, mas também a leitura e a forma como ela é feita. Lecionei durante anos na Escola Superior de Jornalismo e dei-me conta que muitos alunos não tinham gosto pela leitura. E só mais tarde me apercebi de alguns motivos que explicavam esse afastamento. Entre outros, a enorme quantidade de estudantes disléxicos, muito supeiror à que supomos, que tem mais dificuldade em ler. E também a incapacidade, por falta de aprendizagem anterior, de tirar da leitura os seus maiores proveitos. Liam de forma atropelada, sem sabor e sem conseguir situar as ações no espaço e no tempo. Aliás, muitos tinham detestado Os Maias ou o Memorial do Convento (e já se sabe que o pior que se pode fazer a um romance ou a um autor é torná-lo leitura obrigatória) porque não conseguiram viver a ação na época, com luzes a gás ou dinâmicas sociais diferentes. Aplicavam à época do romance o que viam nas suas vidas. Saía uma coisa absurda.
Nesse sentido, como vê os avisos que abundam nas universidades inglesas ou americanas a prevenir os alunos em relação ao conteúdo de certos livros e autores?
É uma menorização dos leitores e dos autores. O mesmo aconteceu em diversos museus, com quadros retirados por representarem certas etnias em posição de subserviência. Tudo isso é fatal. Devemos explicar e não esconder. De outra forma teríamos de pôr uma bomba no coliseu de Roma para mostrar que não pactuamos com imperadores romanos. É um radicalismo sem sentido.
Apoteose dos Mátires confirma o ritmo de publicação que tem vindo a ter. Essa intensidade é uma das conquistas da terceira parte da sua vida, para usar a divisão tripartida de que tanto gosta?
Com a idade, passei a sofrer de alguns padecimentos que não tinha antes, sobretudo na parte física, mas fui abençoado com algum juízo. Ainda pertenço aquele grupo de velhos de quem se diz “de cabeça está bem”. E estou. Tenho memória, capacidade de raciocínio e sobretudo uma grande curiosidade pela vida. Também tenho agora mais tempo, depois de anos de funcionário público e professor. A disponibilidade para a escrita é maior. E como estou bastante condicionado ao espaço da casa, por motivos psico-patológicos, numa agorafobia que me acompanha desde sempre, tenho investido muito nisso.
Há disponibilidade, mas também urgência na escrita?
Além do que disse, sofro de grafomania. Uma tendência para estar sempre a escrever. O pintor Ângelo de Sousa, por exemplo, estava sempre a pintar. Eu também tenho isso. Sustenta-me a vida. Às vezes, abano-me um bocado e digo: ”Está um dia tão bonito, deves é olhar lá para fora.” Mas sou um viciado na escrita, reconheço [risos].
Também tem escrito muito nas redes sociais…
E gosto muito de o fazer. Aliás, aprendi muito a escrever nas redes sociais. É certo que escrever no facebook pode ser degradante para a qualidade da escrita, mas também pode ser uma espécie de magistério. A pontuação que uso on-line é completamente diferente da dos livros, pois estou a dirigir-me a pessoas que não têm nem o tempo, nem o calo de leitura que tem o eventual público dos meus romances.
As redes sociais também parecem um espaço para treinar o seu humor, a ironia, a crónica de costumes.
O que nem sempre corre bem. O humor português raramente passa pelo registo da paródia ou alegórico. As pessoas levam tudo à letra. O Eduardo Prado Coelho chamava muito a atenção para isso. Se usamos uma figura de estilo, há a possibilidade de ser interpretada literalmente. Os ingleses têm um humor mais elaborado, que passa pelo segundo sentido e pelo auto-humor. O português está confinado ao humor do baixo ventre e à escatologia. Mas tenho aprendido muito sobre Portugual no facebook.
Que características portuguesas tem encontrado?
A indignação constante, sobretudo na área da política, mas também uma grande generosidade, o choradinho e o passadismo, mas também a vontade de ajudar. E se eu digo que parti uma perna todas estas características se conjugam [risos].