Em 1944, um ano depois de Casa na duna, publica Carlos de Oliveira (CO) o seu segundo romance, Alcateia, que terá sido apreendido, seguindo-se uma 2ª edição em 1945. No cólofon desta edição se anuncia um novo romance, Os dias e as noites. Nunca saiu um livro com este título, mas talvez o autor o tivesse substituído por um outro mais forte: Pequenos burgueses, saído em 1948, ao qual se seguiria Uma abelha na chuva, de 1953.
Em cerca de dez anos, esta produção literária não se pode considerar abundante, se pensarmos em autores da mesma geração neorrealista como Alves Redol ou Fernando Namora. Aquilo que distingue a obra de CO é o seu sucesso, relativo à nossa escala, como é óbvio, que leva a sucessivas reedições dos seus livros desde esses anos 50 até à sua morte, em 1981, ainda se prolongando sobretudo devido ao facto de Uma abelha na chuva figurar nos programas escolares, sem falar da sua poesia, objeto de sucessivas depurações desde os primeiros livros marcadamente neorrealistas, que ganhou uma dimensão que o colocou entre os nomes de referência da segunda metade do século XX.
Poderá perguntar-se a que se deve a escassez dessa obra romanesca, que só seria quebrada com a publicação de Finisterra: paisagem e povoamento, em 1978, o que deixa uma pausa de 25 anos desde Uma abelha na chuva. Uma explicação será o questionamento dessa estética neorrealista a que CO ficou associado (justamente, diga-se), mas de cujo peso se procurava libertar. E essa libertação foi a causa desse silêncio, levando-o por um lado a procurar uma nova linguagem, que encontraria com esse novo e final romance de 1978, publicado três anos da sua morte precoce, e também a um trabalho de reescrita, mais ou menos permanente, dos livros anteriores: se compararmos as primeiras edições com as últimas, sobretudo nos casos de Casa na duna e de Uma abelha na chuva, temos praticamente outras obras, resultado dessas mais que emendas, reelaborações.
Um exemplo mínimo: se compararmos a 1ª edição de 1953 com a de 1963, em dez anos o romance termina de modo bem diverso, não quanto ao que é dito, mas no modo como é dito. Assim, em 1953, lemos no final o destino da abelha:
“A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo: os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a amocharem-lhe o voo; sacolejões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra. A chuva espezinhou-a, arrastou-se no saibro, debateu-se ainda. Mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.”
Dez anos depois, lemos na 3ª edição:
“A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo: os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a ferirem-lhe o voo; sacolejões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra e a chuva espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.”
E na versão final, a que hoje constitui o texto definitivo:
“A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.”
Dir-se-á que é pouca coisa; mas em cada alteração há ritmos que mudam, de forma quase insignificante para o leitor desatento, palavras que desaparecem, outras que surgem. Talvez este trabalho de reescrita, de apuramento ou depuração do texto anterior, tenha sido também um exercício para encontrar, finalmente, a linguagem narrativa que fez de Finisterra um dos mais essenciais livros de final do século XX, ao mesmo tempo um requiem pela sociedade que ele descrevera nos romances anteriores e um requiem pelo próprio romance, deixando a pergunta: o que escrever depois disto?
Talvez a resposta fosse essa reedição de Alcateia, que ele teria a intenção de transformar num novo romance. Ao contrário dos outros, dessa fase neorrealista, que foram sendo reeditados com as correções que vimos, mais ou menos profundas, Alcateia teria sido posto de lado, talvez devido à sua excessiva vinculação ao neorrealismo ortodoxo. Mas será interessante relê-lo, hoje, como testemunho do que foi a escrita desse período do imediato pós-guerra, dado que a 1ª edição é de 1944 e a segunda de 1945, onde é indicado que a primeira se encontra «fora do mercado» (eufemismo para indicar que tinha sido apreendida).
Agora que se anuncia uma nova edição, será ocasião para avaliar esse livro «maldito» a que o autor teria dado sem dúvida uma forma bem diferente, como sucede na comparação da 1ª e da última edição de Pequenos burgueses (1ª edição 1948, o mesmo ano que Alcateia, última em vida de CO 1981), um livro da mesma inspiração social. Em relação a Pequenos burgueses, um caso interessante é ver como a abertura deste romance foi publicada, com o título «A pequena esperança», no volume Contos e novelas inéditos, das Publicações Europa-América», editado em 1946 (uma 2ª série sairia em 1948). Aí, ao lado de, entre outros, Alves Redol, Fernando Namora, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira publica esse conto que irá constituir os três primeiros capítulos desse livro publicado em 1948, dois anos depois da sua edição autónoma com uma unidade e uma lógica próprias. O título «A pequena esperança» desaparece, substituído por Pequenos burgueses, sem dúvida mais original e com mais força.
Teria já CO, dois anos antes, o romance elaborado na cabeça a partir desse primeiro embrião cuja autonomia é visível? E porquê essa mudança de título? Muitas perguntas que ficam por fazer quando o autor deixa de estar connosco, embora a obra acabe por nos dar algumas respostas à nossa curiosidade; e muitas dessas respostas estão no texto «Tesouro ao sol», de O aprendiz de feiticeiro, incluindo a origem de Alcateia:
«Aqui há 12 ou 13 anos usei eu no romance Alcateia uma versão diferente desta história, ouvida na Gândara, perto de Cantanhede, e que belisca particularmente os advogados».
Querem saber de que história se trata? Um conselho: leiam O aprendiz de feiticeiro, que nos diz muito sobre o processo de trabalho de Carlos de Oliveira, e poderemos redescobrir a versão diferente da história que aí é contada quando Alcateia estiver de novo nas livrarias.J
A linguagem narrativa que fez de Finisterra um dos mais essenciais livros de final do século XX, um requiem pela sociedade que descrevera antes e pelo próprio romance
Carlos de Oliveira (à dtª) com os seus grandes amigos e companheiros de tertúlia José Gomes Ferreira (ao centro) e Augusto Abelaira